Fonte: Revista Época
(Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC) |
Antônio Gomes da Silva soltou a voz ao
empolgar-se com a Banda da Polícia Militar. Ao seu lado, o funcionário levou um
susto:
– Por que você nunca disse que falava?
E Antônio:
– Uai, mas ninguém nunca perguntou.
Ele tinha passado 21 anos como mudo na
instituição batizada de“Colônia”, considerada o maior hospício do Brasil, no
pequeno município mineiro de Barbacena. Em 21 anos, nenhum médico ou
funcionário tinha lhe perguntado nada. Aos 68 anos, Antônio ainda não sabe por
que passou 34 anos da vida num hospício, para onde foi despachado por um
delegado de polícia. “Cada um diz uma coisa”, conta. Ao deixar o cárcere para
morar numa residência terapêutica, em 2003, Antônio se abismou de que era
possível acender e apagar a luz, um poder que não sabia que alguém poderia ter.
Fora dos muros do manicômio, ele ainda sonha que está amarrado à cama,
submetido a eletrochoques, e acorda suando. A quem escuta a sua voz, ele diz:
“Se existe um inferno, a Colônia é esse lugar”.
Antônio ganhou nome, identidade e
história em uma série excepcional de reportagens. Publicado na Tribuna de Minas, de Juiz de Fora (MG),
o trabalho venceu o prêmio Esso de 2012 e foi ampliado para virar um livro que
chega às livrarias nesta semana. Na obra, a jornalista mineira Daniela Arbex
ilumina o que chamou de “Holocausto Brasileiro”: a morte de cerca de 60 mil
pessoas entre os muros da Colônia ao longo do século XX. Convidada por Daniela
para fazer o prefácio de seu livro, abri uma exceção e aceitei, pela mesma
razão que me move a escrever esta coluna: a importância do tema para
compreender nossa época. Leia mais
Em Holocausto Brasileiro (Geração
Editorial), Daniela Arbex devolve aos corpos sem história, que eram os corpos
dos “loucos”, uma história que fala deles, mas fala mais de nós, os ditos
“normais”. Durante décadas, as pessoas eram enfiadas – em geral
compulsoriamente – dentro de um vagão de trem que as descarregava na Colônia.
Lá suas roupas eram arrancadas, seus cabelos raspados e, seus nomes, apagados.
Nus no corpo e na identidade, a humanidade sequestrada, homens, mulheres e até
mesmo crianças viravam "Ignorados de Tal".
Qual é a história dos corpos sem
história? Esta é a questão que Daniela se propõe a responder pelo caminho da
investigação jornalística. Eram Antônio Gomes da Silva, o mudo que falava,
Maria de Jesus, encarcerada porque se sentia triste, Antônio da Silva, porque
era epilético. A estimativa é de que sete em cada dez pessoas internadas no
hospício não tinham diagnóstico de doença mental.
Quem eram eles, para além dos nomes
apagados? Epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, mendigos,
militantes políticos, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para
alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões,
eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram
filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens
e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns deles eram apenas
tímidos. Cerca de 30 eram crianças.
(Foto: Luiz Alfredo/FUNDAC) |
Qual era o destino de quem o Estado
determinava que não podia viver em sociedade, que era preciso encarcerar, ainda
que não tivesse cometido nenhum crime? Homens, mulheres e crianças às vezes
comiam ratos, bebiam esgoto ou urina, dormiam sobre capim, eram espancados e
violados. Nas noites geladas da Serra da Mantiqueira, eram atirados ao relento,
nus ou cobertos apenas por trapos. Instintivamente faziam um círculo compacto,
alternando os que ficavam no lado de fora e no de dentro, na tentativa de não
morrer. Faziam o que fazem os pinguins imperadores para sobreviver ao inverno na
Antártica e chocar seus ovos, como se viu num documentário que comoveu milhões
anos atrás. Os humanos da Colônia não comoviam ninguém, já que sequer eram
reconhecidos – nem como humanos nem como nada. Alguns não alcançavam as manhãs.
Os pacientes da Colônia morriam de frio,
de fome, de doença. Morriam também de choque. Em alguns dias os eletrochoques
eram tantos e tão fortes que a sobrecarga derrubava a rede do município.
Francisca Moreira dos Reis, funcionária da cozinha, conta no livro sobre o dia
em que disputou uma vaga para atendente de enfermagem, em 1979. Ela e outras 20
mulheres foram sorteadas para realizar uma sessão de eletrochoques nos
pacientes masculinos do Pavilhão Afonso Pena, escolhidos aleatoriamente para o
“exercício”. As candidatas à promoção cortavam um pedaço de cobertor e enchiam
com ele a boca da cobaia, amarrada à cama. Molhavam a testa, aproximavam os
eletrodos das têmporas e ligavam a engenhoca na voltagem de 110. Contavam até
três e aumentavam a carga para 120. A primeira vítima teve parada cardíaca e
morreu na hora. A segunda, um garoto apavorado aparentando menos de 20 anos,
teve o mesmo destino. Francisca, cuja vez de praticar ainda não tinha chegado,
saiu correndo.
Nos períodos de maior lotação, 16
pessoas morriam a cada dia. Morriam de tudo – e também de invisibilidade. Ao
morrer, davam lucro. Entre 1969 e 1980, mais de 1.800 corpos de pacientes do
manicômio foram vendidos para 17 faculdades de medicina do país, sem que
ninguém questionasse. Quando houve excesso de cadáveres e o mercado encolheu,
os corpos passaram a ser decompostos em ácido, no pátio da Colônia, na frente
dos pacientes ainda vivos, para que as ossadas pudessem ser comercializadas.
Dos homens e mulheres do hospício, encarcerados pelo Estado e oficialmente sob
sua proteção, até os ossos se aproveitava.
Daniela Arbex salvou do esquecimento um
capítulo que muitos gostariam que seguisse nas sombras, até o total apagamento,
no qual parte dos protagonistas ainda está viva para refletir tanto sobre seus
atos quanto sobre suas omissões. Entrevistou mais de 100 pessoas, muitas delas
nunca tinham contado a sua história. Além de sobreviventes do holocausto
manicomial, Daniela escutou o testemunho de funcionários e de médicos. Um
deles, Ronaldo Simões Coelho, ligou para ela meses atrás: “Meu tempo de
validade está acabando. Não quero morrer sem ler seu livro”. No final dos anos
70, o psiquiatra havia denunciado a Colônia e reivindicado sua extinção: “O que
acontece na Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. No hospício,
tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente. É permitido
andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto, qualquer que seja a sua
forma”. Perdeu o emprego.
Em 1979, o psiquiatra italiano Franco
Basaglia, pioneiro da luta pelo fim dos manicômios, esteve no Brasil e conheceu
a Colônia. Em seguida, chamou uma coletiva de imprensa, na qual afirmou:
“Estive hoje num campo de concentração nazista. Em lugar nenhum do mundo,
presenciei uma tragédia como essa”. Hoje, restam menos de 200 sobreviventes da
Colônia. Parte deles deverá ficar internada até a morte: são aqueles que foram
tão torturados por uma vida dentro do hospício que já não conseguem mais viver
fora. Parte foi transferida para residências terapêuticas para reaprender a
tomar posse de si mesma. Sônia Maria da Costa está entre os que conseguiram dar
o passo para além do cárcere. Às vezes ela coloca dois vestidos para compensar
a nudez de quase uma vida inteira.
Ao empreender uma investigação
jornalística para escrever este livro, Daniela leva adiante pelo menos três
trabalhos fundamentais de documentação contemporânea: as 300 fotos feitas pelo
fotógrafo Luiz Alfredo, para a revista O Cruzeiro, a primeira a denunciar a
Colônia, em 1961(duas fotografias deste acervo são publicadas nesta coluna); a
reportagem transformada no livro Nos porões da loucura (Pasquim), do jornalista
Hiram Firmino; e o documentário Em nome da razão, de Helvécio Ratton, filmado
em 1979, que se tornou o símbolo da luta antimanicomial.
Ao ler Holocausto Brasileiro – vida,
genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil, é prioritário resistir à
tentação de acreditar que essa história acabou. Não acabou. Ainda existem no
Brasil instituições que mantêm situações semelhantes às da Colônia, como
algumas reportagens têm denunciado – ainda que não de forma maciça como no
passado muito, muito recente, e com nomes mais palatáveis do que “hospício” ou
“manicômio”. As conquistas produzidas pela luta antimanicomial, que botou fim
às situações mais bárbaras, estão hoje sob ameaça de retrocesso. É nesse
momento que entramos nós, a sociedade.
Se não quisermos continuar sendo
cúmplices da barbárie descrita por Daniela Arbex neste livro, é preciso
refletir sobre o nosso papel. É bastante óbvio perceber que fábricas de loucura
como a Colônia só persistiram por um século porque podiam contar com a
cumplicidade da sociedade. Mesmo quando o holocausto foi denunciado na revista
de maior sucesso da época, O Cruzeiro, no início dos anos 60, passaram-se décadas
até que a realidade do hospício começou – muito lentamente – a mudar. E outras
gerações foram aniquiladas entre seus muros. Como é possível? É possível porque
a sociedade prefere que seus indesejados sejam tirados da frente de seus olhos.
Não enxergar, para muitos, ainda é solução. E esta é uma das razões pelas quais
a tese do encarceramento sempre encontra ampla ressonância – e tem sido
largamente manipulada por políticos ao longo da história do Brasil, e inclusive
hoje.
Tivesse a sociedade disposta a enxergar
o que estava estampado na revista preferida das famílias brasileiras, em 1961,
e muitas tragédias teriam sido impedidas. Como a de Débora Aparecida Soares.
Ela foi um dos cerca de 30 bebês roubados de suas mães. As mulheres
trancafiadas na Colônia conseguiam proteger sua gravidez passando fezes sobre a
barriga, para não serem tocadas. Mas, logo depois do parto, os bebês eram
tirados de seus braços e doados. Débora nasceu em 23 de agosto de 1984. Dez
dias depois, foi adotada por uma funcionária do hospício. A cada aniversário,
sua mãe, Sueli Aparecida Resende, epilética, perguntava a médicos e
funcionários pela menina. E repetia: “Uma mãe nunca se esquece da filha”.
Em 2005, aos 21 anos, Débora nada sabia
sobre a sua origem, mas não conseguia pertencer de fato à família de adoção.
Tentou o suicídio. Como os comprimidos demoravam a fazer efeito, dirigiu-se à
estrada de ferro, a mesma onde décadas antes havia passado o trem que levara
sua mãe ao inferno. Foi salva por uma amiga, que a carregou para o hospital no
qual mais uma coincidência seria descoberta tarde demais. Dois anos depois,
Débora iniciou uma jornada em busca da mãe. O que alcançou foi a insanidade da
engrenagem que mastigou suas vidas. Sua busca pela mãe é um dos momentos mais
trágicos e reveladores do livro, ao unir passado, presente e futuro no corpo em
movimento desta filha.
Há uma tendência no senso comum de
considerar que categorias como “loucos” são determinadas, imutáveis,
indiscutíveis e, principalmente, isentas dos humores do processo histórico. Não
são. Cada sociedade cria seus proscritos – uma construção cultural que varia
conforme o momento e as necessidades de quem detém o poder a cada época. Há um
livro essencial sobre este tema: Os infames da história – pobres, escravos e
deficientes no Brasil (Faperj/Lamparina). Na apresentação, a autora, a
psicóloga Lilia Ferreira Lobo, que escreve sob a inspiração de Michel Foucault,
faz uma descrição primorosa:
“Existências infames: sem notoriedade,
obscuras como milhões de outras que desapareceram e desaparecerão no tempo sem
deixar rastro – nenhuma nota de fama, nenhum feito de glória, nenhuma marca de
nascimento, apenas o infortúnio de vidas cinzentas para a história e que se
desvanecem nos registros porque ninguém as considera relevantes para serem
trazidas à luz. Nunca tiveram importância nos acontecimentos históricos, nunca
nenhuma transformação perpetrou-se por sua colaboração direta. Apenas algumas
vidas em meio a uma multidão de outras, igualmente infelizes, sem nenhum valor.
Porém, sua desventura, sua vilania, suas paixões, alvos ou não da violência
instituída, sua obstinação e sua resistência encontraram em algum momento quem
as vigiasse, quem as punisse, quem lhes ouvisse os gritos de horror, as canções
de lamento ou as manifestações de alegria.”
Aqueles que foram encarcerados dentro da
Colônia e de outros hospícios do Brasil, em algum momento perturbaram alguém ou
a ordem instituída com a sua voz – ou apenas com a sua mera existência. Em vez
de serem escutados no que tinham a dizer sobre a sociedade da qual faziam
parte, foram arrancados dela e trancafiados para morrer – primeiro pelo
apagamento simbólico, depois pela falência do corpo torturado. A pergunta que
vale a pena fazer neste momento, diante da história documentada pelo Holocausto
Brasileiro, de Daniela Arbex, é: quem são os proscritos de nossa época?
Vale a pena repetir que, na Colônia,
sete em cada dez não tinham diagnóstico de doença mental. O diagnóstico, além
de não representar nenhuma verdade absoluta sobre alguém, perde qualquer
possível valor num lugar como o hospício descrito. Sua única utilidade seria
como justificativa oficial para retirar pessoas incômodas do espaço público,
aquelas cujo sofrimento não poderia existir, violando neste ato seus direitos
mais básicos. Mas o fato de 70% dos internos não ter nem sequer um diagnóstico
é um dado importante para perceber com que desenvoltura os manicômios serviram
– e ainda servem – a um propósito não dito, mas largamente exercido pelo
Estado: o de ampliar as categorias das pessoas que não devem ser escutadas,
calando todos aqueles que dizem não apenas de si, mas de toda a sociedade.
Vivemos um momento histórico muito
delicado,em que está sendo determinado quais são os novos infames da história –
e qual deverá ser o seu destino. E também em que medida o Estado tem poder
sobre os corpos. Me arrisco a dizer que, se ontem os proscritos eram os
epiléticos, as prostitutas, os homossexuais, as meninas pobres e grávidas, as
esposas insubmissas, hoje os proscritos que se desenham no horizonte histórico
são os drogados – e especificamente os “craqueiros”. E o destino apresentado
como solução tem sido, de novo, a internação. Inclusive a compulsória. A tarja
de dependência química funciona como um silenciamento, já que não teriam nada a
dizer nem sobre a sociedade em que vivem, nem sobre sua própria vida. São
apenas um corpo sujeitado ao Estado para ser “curado”. E, para a maioria, nada
melhor do que tirá-los da frente – às vezes literalmente.
É bom aprender com a história.
Holocausto Brasileiro é um excelente começo para uma reflexão não apenas sobre
o passado, mas sobre o presente. Como afirma Daniela Arbex: “O descaso diante
da realidade nos transforma em prisioneiros dela. Ao ignorá-la, nos tornamos
cúmplices dos crimes que se repetem diariamente diante de nossos olhos.
Enquanto o silêncio acobertar a indiferença, a sociedade continuará avançando
em direção ao passado de barbárie. É tempo de escrever uma nova história e de
mudar o final”.
2 Comentários
Já fui trabalhador em uma instituição total, mas nada igual ao relatado e casos como estes devem ingressar na pauta da comissão da verdade e os dirigentes do Estado Brasileiro da época julgados como torturadores.
ResponderExcluirAté hoje a sociedade encara o portador de sofrimento mental como alguém sem caráter, que prefere viver longe de responsabilidades. Não faz muito, na inquisição, os "loucos" eram queimados vivos, já que seu diagnóstico seria possessão demoníaca. Mas as coisas não mudaram tanto. Quem não ouviu as expressões madeira de dar em doido", "café prá louco não leva açúcar", "doido de atar em poste"? Pois é, elas continuam em nosso cotidiano, e os "loucos" seguem sofrendo com a doença e com o preconceito.
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