A Cabala e a
Rosa-Cruz
Os chamados graus
filosóficos são os graus onde a mística que faz da Maçonaria uma prática tão
fascinante é desenvolvida em toda a sua plenitude. No Rito Escocês Antigo e
Aceito, eles vão do 19º ao 30º, constituindo um processo pedagógico, ao longo
do qual se distribui toda uma série de ensinamentos de fundo moral e
iniciático, destinada a inspirar o iniciado maçom a buscar maiores patamares de
sabedoria e aperfeiçoar, ainda mais, o seu espírito especulativo. Nesses graus
a ênfase é posta na face ética e espiritualista da prática maçônica, razão pela
qual encontraremos, ao longo do desenvolvimento dos rituais respectivos, uma
série de temas filosóficos e religiosos, ora tratados de forma simbólica e
iniciática, na melhor tradição das antigas seitas gnósticas e escolas
cabalísticas, ora de forma acadêmica, como numa escola tradicional.
As alegorias que
fundamentam o desenvolvimento do catecismo maçônico nos graus filosóficos são
impregnadas de um profundo misticismo, inspirado pelas tradições herméticas, a
gnose cristã vista pelos olhos dos praticantes do pensamento rosa-cruz, e
principalmente pelas doutrinas cabalistas.
Procura-se
realizar, com base nesse simbolismo, o desenvolvimento de uma filosofia
semelhante à que amparava a simbólica Cavalaria do Graal, ou seja, uma
filosofia cristã, de fundo místico, cujo objetivo é demonstrar ao iniciado
maçom que o homem verdadeiro é aquele que combina em seu
caráter a espiritualidade transmitida pela verdadeira sabedoria contida nos
escritos do Velho Testamento ‒sabedoria essa que foi transmitida por Deus aos
patriarcas hebreus e seus profetas ̶ com os ensinamentos de Cristo,
transmitidos pela melhor tradição gnóstica.
Em nossa obra
“Conhecendo a Arte Real,”[1]advogamos para os filósofos
hermetistas da Renascença, especialmente Giordano Bruno e os chamados filósofos
do movimento Rosa-Cruz, uma influência bastante sensível na formação dos grupos
especulativos que deram origem á Maçonaria moderna. Agora podemos dizer que
tais grupos, que chamamos de rosacrucianos, não teriam existido se não fossem
os cultores da Cabala filosófica, cujas correntes de pensamento se
desenvolveram a partir do século XII, principalmente nas regiões européias com
predominância da cultura mourisco-judaica, onde a influência desses povos era
muito forte.[2]
Foram filósofos
dessa escola, como Picco de La Mirandola, Johann Reuchelin, Cornéllius Agripa,
Guilherme Postel, mais este último, aliás, os grandes inspiradores da tradição
hermética renascentista e particularmente do chamado pensamento rosacruz.
Postel, que nasceu em 1501, foi o autor de uma obra chamada De Orbis
Terrae Concondiae, na qual advoga o estabelecimento de uma única nação
universal, guiada pelo papa e governada pelo Rei da França, que, segundo ele,
era descendente direto de Noé.[3] Conta-se que tentou convencer
inclusive o fundador da Ordem dos Jesuítas, Inácio de Loyola, para ajudá-lo a
estabelecer uma Confraria universal para a realização desse propósito.[4]
A interação mais
profunda entre a tradição cabalística e a filosofia dos rosa-cruzes, porém, só
viria acontecer mais tarde, já no século XIX. Foi responsável por essa
interação o químico Estanilau de Guaita, que fundou em 1887 a Ordem Cabalística
da Rosa-Cruz, cujo objetivo era o combate a toda forma de charlatanismo dentro
daquilo que ele entendia como a verdadeira ciência, ou seja, a cabala
filosófica. Data dessa época a criação das sociedades denominadas Rosa-Cruz,
tal qual a conhecemos hoje. Porém, outro grupo de rosacrucianos permaneceu na
Maçonaria desenvolvendo e enriquecendo com suas contribuições os rituais
maçônicos. [5]
O Kadosh
Os graus
filosóficos são ministrados na Loja conhecida como Conselho Filosófico do
Kadosh. A palavra Kadosh é de origem hebraica e significa “sagrado”. Deriva das
tradições rabínicas existentes nas antigas seitas de Israel. “Kadosh” era o
sacerdote revestido de características especiais, inviolável, um mestre
consagrado, possuidor de todos os conhecimentos da religião judaica e tido como
verdadeiro profeta. Na tradição cabalística o “Kadosh” era o presidente da
chamada Assembléia Sagrada, grupo de rabinos iniciados nos mistérios da Cabala
e guardiões da Doutrina Secreta da religião de Israel.[6]
Nos antigos ritos
da Maçonaria Escocesa o sacerdote “Kadosh” usava um cetro, ou uma medalha
dourada na testa para demonstrar o seu status. Era tido como guardião dos
“segredos ocultos”, aquele que defendia a entrada da “cripta” onde se ocultavam
os Mistérios. É possível que esses elementos rituais tenham sido incorporados
pelos cavaleiros templários em seus ritos, sendo depois trazidos para a
Maçonaria pelos chamados rosacrucianos que se filiaram à Ordem no fim do século
XVII e início do século XVIII, já que entre esses filiados havia muitos
“cristãos novos”, que entraram na Maçonaria para escapar da dos Tribunais da
Santa Inquisição.[7]
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Embora sem o
misticismo dos antigos rituais, o simbolismo dos ritos templários, com os
enxertos que lhe foram dados pela tradição cabalística, foi adotado em vários
sistemas maçônicos e tornou-se o conjunto conhecido como graus iniciáticos. No
Rito Escocês, acredita-se que ele foi introduzido primeiro na Loja de Lion em
1743 e daí se espalhou pelas diversas Lojas do continente, sendo depois
incorporado no conjunto do ritual. Em princípio era um rito de caráter
predominantemente militar, uma vez que o próprio REAA, como se sabe, foi criado
pelos partidários do Príncipe Charles, herdeiro do trono inglês, quando este
esteve exilado na França.[8] Mais tarde ele foi reformado
pelo Grande Oriente da França, transformando-se num rito essencialmente
filosófico.
O simbolismo da Cavalaria
Dessa forma,
podemos dizer que os chamados graus filosóficos, ou Kadosh, são estruturados a
partir das tradições hebraicas fornecidas pela grande tradição da Cabala.
Incorporam também vários elementos da Gnose cristã e da tradição hermética, que
podem ser recenseados na forte presença dos temas ligados á prática alquímica.
Finalmente, há também uma grande influência da cultura cavalheiresca, pela
evocação constante de temas ligados á cavalaria medieval, especialmente os
cavaleiros templários.
Esse cipoal de
influências não é estranho, dado que a Maçonaria é a herdeira natural de todas
essas tradições cavalheirescas, sendo como é, por analogia entre seus objetivos
e os princípios cultivados pela Genette, uma verdadeira cavalaria moderna.
Essa analogia com a
antiga instituição da Cavalaria foi um simbolismo muito explorado pelos maçons
nos séculos XVII e XVIII, pois tal como o cavaleiro medieval, o maçom era visto
como um “herói”, defensor dos fracos e oprimidos e realizador da Justiça. Essa
postura dos maçons foi ironizada pelo Imperador Napoleão I (que também foi
maçom), ao responder ao seu Ministro da Justiça, que propôs a ele fechar as
Lojas maçônicas na França, pois em seu entender os maçons eram todos
conspiradores. Napoleão respondeu que eles deviam ser deixados em paz, pois os
“maçons gostam de brincar de cavaleiros e só serão perigosos no dia em que eles
mesmos acreditarem em suas fantasias”. [9]
Napoleão falava com
conhecimento de causa, pois ele mesmo, cuja carreira fora toda construída em
cima dos acontecimentos que lastrearam a Revolução francesa, e que ele mesmo
fora iniciado na Maçonaria para compor forças políticas, que naquele momento a
Maçonaria representava no Estado francês, sabia o poder que a Ordem tinha e o
peso que ela representa quando seus membros efetivamente começam a exercê-lo.
Dessa forma, o
iniciado maçom que se embrenha pelos ensinamentos dos graus filosóficos precisa
tem em mente que o que ele vai aprender é um conjunto de ensinamentos que visa
recuperar, a nível de espírito, um mundo arquetípico que norteou a formação do
espirito dos maçons em um momento da história em que as questões éticas,
morais, religiosas e principalmente cívicas, eram as principais preocupações da
elite intelectual da época. Pois essa foi a época da consolidação dos estados nacionais
e da formação das grandes nações do ocidente. Tempo em que os ideais de ordem,
justiça, liberdade e igualdade entre as pessoas eram os principais anseios das
pessoas, ideais que parecem ter se perdido com o tempo e esquecidas pela
maioria das pessoas, e infelizmente pelos próprios maçons modernos
[2] A
Costa Mediterrânea espanhola, dominada pelos mouros, e a região do Languedoc
francês foram os territórios onde floresceu a seita dos cátaros, seita gnóstica
que adotava crenças semelhantes aos antigos maniqueístas. Eram cristãos, mas
recusavam os dogmas da Igreja Católica, como a virgindade de Maria, a
deificação de Jesus, o dogma da ressurreição, etc. Alguns autores apontam
estreitas ligações entre os cátaros e os cavaleiros templários, o que teria
levado a Igreja de Roma a promover uma verdadeira cruzada contra os territórios
por eles habitados. Uma das razões dessa cruzada seria o fato de os cátaros
serem os depositários dos segredos dos templários, os quais herdaram após a
extinção da Ordem dos Cavaleiros do Templo. Para mais informações sobre esse
assunto veja-se o capítulo IV da nossa obra, Conhecendo a Arte Real, citada.
[3] A
influência dessas crenças na Maçonaria é bastante forte. Vide especialmente o
grau 21, denominado “ Cavaleiro Noaquita”.
[6] A
Assembléia Sagrada, segundo o Sepher A Zhoar, a Bíblia cabalística, era
composta por dez rabinos e funcionava nos moldes de uma Loja Maçônica. Essa
Assembléia tinha por função a guarda e a transmissão oral dos ensinamentos da
Cabala.
[7] “Cristãos
novos” era o apelido dado aos judeus que se filiavam ao Cristianismo para
escapar da perseguição movida contra eles pelos tribunais da Inquisição. Um
famoso “cristão novo” português foi o explorador Fernando de Noronha, que deu
nome à ilha que leva esse nome.
[8] Ver,
nesse sentido, o discurso proferido pelo Cavaleiro André Michel de Ramsay, em
1736, aos maçons franceses, exaltando as excelências da Maçonaria Escocesa e
suas ligações com os cavaleiros cruzados.
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