Por Henri Pena-Ruiz - Tradução José Filardo
A aspiração à felicidade
pessoal relega a moralidade a um segundo plano? Quanto à moralidade, não faz
ela da felicidade pessoal um objetivo sem nobreza, comparável ao registro do
egoísmo? Em suma, a ética da realização contradiz a moralidade, e esta não pode
advir em detrimento de tal ética? Essas questões formam uma espécie de círculo
que a filosofia sempre tenta pensar. Sejamos virtuosos para sermos felizes!
(Estoicos). Sejamos felizes para sermos virtuosos! (Epicuristas). Uma
alternativa a dialetizar. Tem a realização pessoal uma dimensão coletiva,
exceto nas histórias do tipo Robinson Crusoé? E o desenvolvimento sustentável
das sociedades não repousa sobre o desenvolvimento de todos os seus membros,
exceto na mitologia ultraliberal? Nosso presente radicaliza o questionamento.
Qual presente? O frenesi de
lucro e competição tornou-se a obsessão coletiva e individual. Em tal contexto,
a ética e a moral, confundidas ou distintas, muitas vezes aparecem como ”
suplemento de alma de um mundo sem alma.” (Marx). As empresas vestem de pompa o
discurso “ético” tratando os “recursos humanos” como estoque a “desovar”. E sem
qualquer complexo a precariedade é elevada a norma de trabalho. “O amor e a
saúde são precários. Por que o trabalho deveria escapar à lei? “(Laurence
Parisot, então presidente do MEDEF, em 2005). Belo discurso moral!
Em paralelo à fascinação
pelo consumo, conjuga-se o fetichismo dos objetos e a indulgência narcisista.
Os anúncios publicitários retratam jovens, ricos, bonitos e saudáveis, que
reivindicam o bem exaltado com a exclamação habitual “eu o quero porque eu
mereço.” Qual é o preço de tal sistema, que externaliza o que custa à natureza,
aos trabalhadores e à comunidade? A preocupação do humano é relegada às
contingências da caridade, respeitável, mas insignificante quando novas formas
de miséria se acotovelam ao lado das vitrines da abundância exibida. Trégua de
moralismo hipócrita, de cinismo velados. Um pouco de história filosófica.
Ética e moral: dois
conceitos distintos
Cuidar de nosso pensamento,
por gosto, para cuidar de nossa conduta, por desejo de sabedoria. Toda a
filosofia convida a tal modo de estar no mundo, que traz a marca viva da
humanidade. Uma disciplina prática se distingue aí, que os gregos antigos
chamavam ética e a filosofia clássica, moral. A etimologia grega do termo ética
refere-se em primeiro lugar aos usos e costumes comuns a um grupo humano.
(Ethos: modo de ser). Da mesma forma que a etimologia latina da palavra moral
(mos, moris: usos, costumes, modos de ser). Para a filosofia, nenhum conformismo,
nenhuma submissão incondicional aos costumes. A reflexão que ela desenvolve
pretende colocar a sociedade distante dela mesma. Então, nos interrogamos sobre
o que é, nos perguntando o que deveria ser, sobre o que é bom ou certo a fazer.
Assim, a ética abrange tanto
a realização humana quanto a felicidade que a certifica e que a concordância
inter-humana fundada na norma política ou exigência moral. Parte essencial da
filosofia, ela manifesta sua aposta prática no prolongamento de seu ideal de
sabedoria teórica. Abrange os fins visados na ação e sua hierarquização
racional, as exigências da vida social e os exercícios através dos quais se
adquire o auto-controle. A sabedoria existencial torna-se o exercício regular,
construção de controle e equilíbrio, cultura de liberdade. No horizonte, a
felicidade como realização individual e coletiva, a virtude tanto moral quanto
cívica, como disposição adquirida através de ser cultivada. A ética integra a
busca os prazeres e alegrias, o domínio do sofrimento e da dor, mas também as
boas maneiras em relação aos outros. Sem dogmatismo imposto, mas sim conselhos
diversos de razões, como nas cartas do estoico Sêneca (A Lucilius). Se o
cristianismo opôs a moral como ascese e abstinência à ética humanista como
realização livre e feliz, os dois termos são novamente comparados quando
pareceu na Renascença e depois no século do racionalismo, que ambos encarnam
uma exigência orientada para fins compatíveis.
Platão (-428 / -348) e o
anel de Giges: o olho da consciência
“Nem visto nem conhecido.”
“Não visto não tomado.” Homens não agem com retidão a não ser devido a uma
possível sanção? Neste caso, eles não são justos, mas simplesmente prudentes.
Em A República, Platão evoca a lenda de Giges. Este pode tornar-se invisível,
rodando o anel de ouro com uma pedra mágica. Ele o usa para matar o rei da
Lídia e tomar seu lugar. Invisível e, portanto, com certeza da impunidade, ele
pode cometer os piores crimes para se tornar rico e poderoso. Esta lenda se
abre sobre a diferença entre o certo, externo, e a regra moral, interna. A
fragilidade de uma ordem externa, de pura restrição então aparece. Sobre ela
desliza a sombra do crime sem testemunhas e impunidade assustadora. A arte de
esconder prepara os erros futuros. Se as leis externas são, portanto, colocadas
em cheque, somente a consciência moral pode basear a ação justa. O olho da
consciência não está aberto constantemente? O Caim fratricida não pode se
tornar invisível à sua própria consciência. Sua fuga frenética não fará com que
ele esqueça seu crime, onde quer que vá. Ele fecha os olhos para não ver. Em
vão. Mesmo longe de testemunhas que viram primeiro, um erro cometido é para a
eternidade. “O olho estava no túmulo e encarava Caim”. Para Sócrates, que vê
primeiro na justiça uma qualidade da alma, não pode haver dúvida de que um
homem de bem conserva o anel de Giges. Ele nunca o iria usar porque sua
consciência, foco íntimo da ação, seria determinada a fazer o bem, quer
incógnito ou aos olhos de todos. O homem livre escolhe, e ele escolhe, assim, a
versão que ele pretende dar da humanidade: é a si mesmo que ele tem, primeiro,
que responder. A natureza exemplar de sua conduta está intimamente ligada a
essa responsabilidade interior. A impunidade é, assim, pior que a punição
porque incentiva a reincidência, e endureceu o mal na alma. Esta alma deve
estar livre de desejos selvagens, de impulsos, não para os anular, mas para os
controlar por sua liberdade. Tal equilíbrio interior é destruído pela
frustração total do asceta radical, tanto quanto pela intemperança e o excesso
do devasso. O acordo possível entre a ética e moral harmoniza as disposições
subjetivas do homem e a boa organização da vida social. Daí o papel da
educação. Aristóteles aprofunda esta abordagem.
Aristóteles: uma ética da justiça
(-384 / -322)
Na divisão tripartite da
filosofia antiga, a ética coroa a física, em seu sentido de conhecimento da
natureza, ela própria tornada possível pela lógica, implementação de métodos de
conhecimento racional, a saber, a metafísica, como recurso aos fundamentos e
primeiros princípios. Aristóteles ilustra este papel essencial da ética, cuja a
função prática não viola o conhecimento desinteressado que o animal humano
gosta de cultivar para se realizar.
Podem os homens viver sem se
colocar a questão dos objetivos que perseguem e refletir sobre isso? Não,
porque nesse caso eles não serão mestres de suas condutas. Aristóteles enfatiza
a aposta filosófica de tal questionamento, que abre seu livro intitulado Ética
a Nicômaco. Que tipo de vida queremos viver? Que fins buscamos para si
mesmos? E que propósitos não visamos, a não ser diante de outra coisa que não
sejam eles mesmos? O pensamento, como em Platão, deve se afastar das
emergências diárias do homem de negócios. Recuo e distância. Ela se torna teleologia
fundamental (do grego telos, que significa seta, meta). A felicidade não é o
objetivo final, mas estado de alegria duradouro que acompanha a
auto-realização. Em suma, o sinal de que o ser se realiza melhor, o que é o bem
maior, e não um bem entre outros.
Em cada um, a plenitude da
humanidade exige em primeiro lugar a satisfação de suas necessidades naturais
através de atividades que o permitam: agricultura, caça, pesca e artesanato,
pecuária, e logo trocam como parte da divisão do trabalho. O termo economia
deriva da palavra oïkos, que significa a casa da família, e da palavra nomos
que significa a regra. A economia tem, portanto, como finalidade a regra de
aprovisionamento da família. Aparentemente este dominio obedece às suas
próprias leis, sem regras morais. Na realidade, a sua razão de ser exige uma
regulação ética, para que a ação seja adequada à sua finalidade. A natureza
fornece a referência. É natural que cada ser humano procure se realizar,
cultivar seu próprio gênio envolvendo-se em pensamento por puro prazer de
atingir o melhor de si mesmo. Ao fazer isso ele adota uma visão ativa, a
phronesis (sagacidade, sabedoria prática). Trata-se de viver bem (eu-zen), não
apenas de sobreviver, o que torna possível a felicidade (em grego, eudaimon).
No âmbito da cidade,
relações humanas devem se originar da justiça (diké) e da amizade (philia). Uma
regra simples para a conduta humana é rejeitar os extremos. A verdadeira
coragem exclui a covardia, mas também a temeridade excessiva. Por conseguinte,
a virtude ética rejeita a ganância que o filósofo já identifica naqueles que
acumulam dinheiro em vez de usá-lo como um equivalente geral das mercadorias
para facilitar as trocas. A acumulação infinita de dinheiro opõe-se a seu papel
legítimo de mediador de trocas. Assim, a moderação é condizente com a economia
e invalida o entesouramento. Ela é necessária para que cada um receba o que têm
direito. Justiça distributiva e justiça repartitiva fundamentam o equilíbrio
interno da comunidade (koinonia), organizada na cidade (polis). A philia,
amizade ou amor, confirma tal ética.
Na esteira da ética
aristotélica, Amartya Sen, o economista indiano especialista nas fomes e
miséria de que é a fonte denuncia da mesma forma a lógica financeira destituída
de qualquer propósito humano. Em outubro de 1998, o Prêmio Nobel de Economia
lhe foi concedido. Para ele, a economia não é útil e legítima, a não ser se
integra a ética. Reduzir o social a um resíduo opcional da economia
financializada é um absurdo que produz o paradoxo de populações morrendo de
fome perto de enorme estoques de alimentos. O princípio da responsabilidade
caro a Hans Jonas é também um princípio moral a se opor à terceirização de
custos humanos e sociais como aqueles dos custos ambientais de um frenesi por
lucro sem limites.
Epicuro. O círculo virtuoso
da felicidade
Na esteira de Aristóteles,
Epicuro diz que um ser humano é livre quando age segundo a única necessidade de
sua natureza. Mas este naturalismo revela o princípio do prazer (em grego
Hedone) como a mola mestra do dinamismo humano. Toda uma ética se baseia na
busca controlada do prazer. Nenhuma relação com a libertinagem nem aos vícios
que escravizam, mas, ao contrário, a escolha racional na justa medida, penhor
de liberdade. Nada mais. A experiência mostra que o excesso estraga o prazer e
pode gerar o seu oposto, a saber, o sofrimento, como aquele copo de vinho que
eu tomo depois de tantos outros, mecanicamente, sem sequer saborear, e que
provoca dois dias de náuseas. A objeção ao excesso não é aqui de natureza
moral. Ela revela a simples prudência (phronesis) transformada aqui em
sabedoria prática.
Naturalmente, aqueles que
sabem se contentar com pouco poderão desfrutar as iguarias refinadas de uma boa
refeição. Mas não tornando um hábito incontrolável, ele nunca vai ser infeliz
quando as condições externas não lhe oferecerão. Daí a sua independência,
chamada autarkeia (autarquia, auto-suficiência), uma condição de um ser que só
depende dele mesmo. Tal é a ética da liberdade, fonte de realização que torna possível
a relação desinteressada com os outros tal como ela se afirma na amizade ou no
amor (philia). Esta independência exclui tensão egoísta; ela abre para o
altruísmo. A moral, neste caso, é uma resultante da ética. Sejamos realizados,
portanto felizes, para sermos virtuosos. O inverso também é verdadeiro, que se
inscreve na ética estoica: sejamos virtuosos, e seremos felizes.
Esta é a aposta Epicurista,
que é encontrada em Rabelais, Espinosa e Diderot, entre outros. Uma pessoa
livre acessa um prazer de rara qualidade. Podemos, então, desfrutar
harmoniosamente de si mesmo e do mundo como um prazer constitutivo (do grego
catastematikos). Um contentamento sustentável, a verdadeira alegria de viver,
ultrapassam aqui o prazer fugaz de uma satisfação pontual. Este prazer de vida
de que desfrutamos gratuitamente, desinteressadamente, sem que seja necessário
referir-se a algo diferente dela mesma, supõe o domínio de seus desejos e a
posse de bens essenciais.
Enfim, este estilo de vida
se instala no mesmo momento em que é dado ao homem: o momento presente, que ele
precisa saber colher e apreciar como ele merece. “Carpe diem”, dizia Lucrécio,
poeta latino discípulo de Epicuro: “Aproveite o dia”. Cada momento é o primeiro
e também o último: todo o seu valor está em sua plenitude sensual e afetiva,
intelectual e estética, muitas vezes única. O prazer de um olhar trocado, um
sorriso, de uma corola na luz azul do sol, de uma brisa fria sobre a pele, de
um beijo, do amor em carícia tocada ou apertada.
A filosofia, medicina da
alma, aplica o remédio quádruplo que liberta a vida de medos infundados
(aqueles de deuses, morte, dor) e aponta o caminho para a felicidade. A
ausência de problemas e o gosto pelo prazer (hedonismo) formam um horizonte
onde a philia afasta todo ressentimento, todo ciúme, toda compensação odiosa.
Sim, a felicidade pode dar origem à virtude, e se alegrar de a alimentar.
A moral da abstinência em
nome de Deus
A herança antiga conhecerá
uma elisão com o aparecimento de uma moral cristã, tomando o lugar da ética
como conduta de vida para a felicidade. Com o cristianismo, a presença do mal
no mundo é atribuída a um pecado original, ele mesmo gerado pela ganância
humana. Transgredindo a proibição divina de colher o fruto da árvore do
conhecimento do bem e do mal, a humanidade do primeiro homem se corrompeu. Ela
rompeu seu vínculo com Deus. Daí a queda, o trabalho penoso, as doenças e o
sofrimento e a morte.
O mundo é um lugar de
perdição, onde vive a parte maldita da humanidade. A imoralidade prevalece ali:
entrega-se aos prazeres da carne que marcam a adesão do homem à horizontalidade
da humanidade em detrimento da verticalidade da relação com Deus. Em As
Confissões, Agostinho desenvolve uma tipologia do desejo (libido), descrita
como “concupiscências”, um termo pejorativo.
O que fazer? O mundo pode
ser aquele da redenção através da abstinência, que se reduz ao mínimo
necessário para a satisfação das necessidades. Trata-se de superar as captações
relacionadas com a vida carnal. Daí a desqualificação da sexualidade de prazer
e dos prazeres terrenos. Na esteira de Agostinho, S. Francisco de Salles define
o bem e o mal em sua Introdução à vida devota (III): “Este é o
grande mal do homem, diz Santo Agostinho, querer desfrutar das coisas que ele
deve usar somente, e querer usar aquelas que ele só deve desfrutar: devemos
desfrutar das coisas espirituais, e só usar as corporais; daí,
quando o uso é convertido em desfrute, nossa alma racional também é convertida
em alma brutal e bestial. ”
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Em ruptura com os ideais
humanistas da Antiguidade, Agostinho opõe a Cidade dos Homens à Cidade de Deus.
Por volta de 400, ele escreveu em A Primeira Catequese (19, 31): “Duas cidades,
a dos ímpios e a dos santos avançam desde o início da humanidade até o fim do
mundo”. Seu livro intitulado A Cidade de Deus esclarece o significado desse
dualismo lendário: “Dois amores construíram duas cidades: a da terra para o
amor de si mesmo até o desprezo de Deus e a do céu para o amor a Deus até o
auto-desprezo”. A teologia da “parte maldita” deriva do mau uso do
livre-arbítrio humano, fonte de pecado. A vida é julgada em nome de um
além-mundo: o além, lugar de condenação ou de bem-aventurança eterna.
Paradoxalmente, esta moral
promove o medo como recurso para submissão a um suposto deus. Ela restringe a
ética promovendo apenas o dever e a abstinência. Coloca as três virtudes
teologais: fé, esperança e caridade. No plano moral, essas virtudes podem levar
a grandes coisas, daí a ajuda levada aos mais pobres e o amor ao próximo. Mas
ela também pode ligar-se a uma vontade de poder terreno, fonte de intolerância,
que leva a muitos crimes. A religião pode ser fundamento de uma moral, mas ela
também pode alimentar o ódio e perseguir aqueles que não concordam com o dogma.
Renascimento. A refundação
ética da moral
Com o Renascimento e a
redescoberta dos grandes filósofos gregos, uma refundação humanista da moral
reabilita a ética como uma arte de viver aqui em baixo. Uma ética de realização
pessoal é expressa nas obras de Rabelais e de Montaigne. Epicurismo e
estoicismo, entre outros, são enfatizados, sem que seja rejeitada até agora a
religião cristã. Rabelais define a liberdade como princípio regulador a ser respeitado
na Abadia de Thelema: “Toda a sua regra se realizava nesta cláusula: Faça o que
quiser, como pessoas livres, bem-nascidas, bem educadas, que vivem em companhia
honesta têm, por natureza, um instinto e um estímulo que sempre empurra a
virtude e remove o vício -(…) Estes, quando são esmagados e escravizado por uma
sujeição e constrangimento vil, desviam-se da nobre paixão pela qual eles
tendiam livremente à virtude, a fim de demitir e quebrar este jugo de servidão;
porque nós sempre realizaremos as coisas proibidas e cobiçaremos o que nos é
negado”.
O pessimismo relacionado com
o tema do pecado original não leva à mesma ética que a confiança no homem
desenvolvida pelo humanismo de Rabelais, que aposta na liberdade de se realizar
para promover a virtude. Quanto a Pico della Mirandola, ele reinterpreta o mito
cristão da criação à luz do mito de Prometeu. O homem é criado livre e sua
semelhança a Deus tem agora precedência sobre a finitude que o levou a pecar.
Em suma, o humanismo redefine a moral e reabilita o naturalismo de Aristóteles
e de Epicuro para reunir a felicidade e a virtude.
Montaigne articula
explicitamente a moral como respeito pelos outros e sua liberdade com a
combinação das éticas herdadas dos estoicos, epicuristas e céticos. Ele diz
“amar a vida” e querer “desfrutar de si separado” sem descurar as doçuras do
amor e da amizade (principalmente com La Boétie). Ele cultiva tanto o
auto-controle estoico quanto a aritmética dos prazeres epicuristas. Tal ética
de vida leva a uma moral da tolerância e do respeito que ele opõe tanto ao
fanatismo das guerras religiosas quanto à escravização de povos inteiros após a
descoberta da América. “Cada um chama de bárbaro aquilo que não é seu costume”.
A condenação moral de toda opressão se funda aqui sobre um autêntico humanismo.
Racionalismo e moral:
Descartes e Spinoza
Um humanismo que o grande
século do racionalismo confirma com Descartes. Descartes fez da moral um
propósito importante da filosofia, do qual ela é parte considerável como
sabedoria suprema tornada possível graças ao conhecimento da natureza em si
enraizada na metafísica, entendida como uma teoria dos princípios e
fundamentos. “Toda a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica,
o tronco é a física e os ramos emergentes do tronco são todas as outras
ciências, que se reduzem a três principais, a saber, a medicina, a mecânica e a
moral; entendida como a mais alta e mais perfeita moral, que pressupõe inteiro
conhecimento das outras ciências, é o último grau de sabedoria”.
Vemos que a moralidade
realizada não pode realmente vir a não ser para coroar todo o edifício da
filosofia, para permitir que todos possam bem conduzir sua razão e bem se
conduzir. Enquanto isso, uma moral provisória, delineando a moral definitiva
permite agir com a melhor lucidez para as urgências da vida cotidiana.
No espírito do método
cartesiano, mas com diferentes teses, Espinosa chamou de Ética a sua obra
prima. Ele propõe sob este nome uma filosofia completa da natureza e de como o
ser humano se situa nela para realizá-la. A questão moral ali figura como
reflexão sobre o auto-controle que possibilita o respeito aos outros e a
solidariedade humana. A busca de prazeres tão diversos quanto possível não tem
outro propósito que a realização equilibrada dos seres humanos. Portanto a
superstição da abstinência deve ser denunciada como fonte de frustrações
ilegítimas: “Certamente apenas uma superstição feroz e triste proíbe ter
prazeres. Em que, de fato, é mais apropriado satisfazer a fome e a sede do que
afastar a melancolia? (…) Nenhuma divindade, nenhum outro que não seja um
invejoso, tem prazer com minha impotência e minha dor, nenhum outro tem como
virtude nossas lágrimas, nossos soluços, nosso medo e outras marcas de
impotência interior “.
A sabedoria ética é baseada
em um movimento de elucidação da realidade e dos princípios da ação. Ela coloca
em jogo a razão. Isso pode ser entendido como a faculdade especificamente
humana que é cultivada ao longo da existência para cumprir o desejo de ser. Por
sua dinâmica, ela leva o sábio a desejar que todos os homens também progridam
igualmente em tal direção. O compartilhamento da lucidez é também a consciência
viva daquilo que os homens podem uns pelos outros. Daí uma temática da
generosidade, que solidariza a realização pessoal com a realização do outro.
Lei moral e liberdade: de
Rousseau a Kant
A plasticidade do ser humano
se exprime no papel da educação para que os potenciais se tornem faculdades
reais. Para o homem, falamos de conduta, distinguindo-o assim do animal, regido
por instinto, padrão de comportamento fixo e inato. Do possível ao real, a
educabilidade chama um cultura de si mesmo. Normalmente, a evocação da moral
está ligada à de dever, e mesmo o dever ser que muitos filósofos colocam em
relação ao ser, como um requisito que se lhe impõe. Esta dimensão normativa
parece contradizer a liberdade entendida como uma manifestação espontânea, sem
obstáculos, de vontade de viver. O homem livre agiria sem lei. E toda ideia de
lei seria, portanto, liberticida. Mas esta visão espontaneísta é insustentável.
Ele desdenha a responsabilidade da atividade. Trata-se de impulsos
descontrolados? De motivos inconscientes? De interesses particulares assumidos
sem distância? De proibições religiosas internalizados durante a educação? De leis
fisiológicas brutas ou vícios irresistíveis? Seja qual for o caso, será difícil
considerar liberdade uma determinação onde o sujeito agente não tem o controle.
Daí a busca por uma decisão
que pudesse ser refletida e distanciada, produzida pela razão, que leva à
liberdade moral. Rousseau está no coração da refundação das sociedades:
“Poderíamos acrescentar ao acervo do estado civil a liberdade moral que por si
mesma torna o homem verdadeiramente mestre de si mesmo; porque o impulso do
apetite por si mesmo é escravidão, e a obediência à lei que é prescrita é
liberdade. “. Como podemos ver, a liberdade não reside na ausência de lei, mas
na autonomia que faz com que um indivíduo ou grupo dê-se a sua própria lei, e
se defina assim como soberano. A forma predominante e também perfeitamente
adequada para expressar o fato de que a soberania do indivíduo ou popular
consiste em obedecer a uma lei da qual ele mesmo é o autor. A piedade,
repugnância espontânea em ver sofre meu semelhante, livra-me do egoísmo, e me torna
capaz de querer o que é bom para todos. Ele fornece seu fundamento moral à
vontade geral.
A lei moral como autonomia
humana: Kant
O modelo da autonomia do
cidadão que legisla, definida por Rousseau, é retomada por Kant e transposta da
lei política à lei moral. Uma liberdade essencial se afirma ali. É o fato de
ter em si mesmo, e não nas circunstâncias em mudança, o princípio de suas
ações. Somente uma boa vontade garante a boa ação. Por outro lado, agir como a
lei exige, por medo da punição, é somente se submeter à força policial. A paz
das cidades é jogada em dois níveis diferentes do direito e da moral.
A razão é dita prática na
medida em que produz regras de ação, seja escritas (como as leis jurídicas) ou
não escritas, presentes na consciência (como as máximas de ação moral). Para
Kant, a lei política ou moral como fonte de obrigação é necessária em função da
natureza humana. O aperto interior da inclinação sensível impede a liberdade de
decidir e agir permanecendo senhor de si mesmo. Os homens não são santos …
“Aplicando-se aos homens, a lei tem a forma de um imperativo, porque se pode,
de fato, supor neles, enquanto seres razoáveis, uma vontade pura, mas não lhes
atribuir, enquanto seres sujeitos às necessidades e causas sensíveis de
movimento, uma vontade santa, isto é, uma vontade que não seja capaz de
qualquer máxima contraditória com a lei moral. Para eles, a lei moral é,
portanto, imperativa, que comanda categoricamente, pois a lei é incondicionada
“.
Kant chama de “heteronomia”
o fato de ser submetido a inclinações sensíveis descontroladas, e se opõe à
autonomia entendida como capacidade de se dar sua lei. A força moral da razão
se exprime em cada ser humano como a habilidade de se conduzir, de se ficar uma
lei original, da qual ele é o autor. Tal faculdade certifica uma maneira de ser
única, exclusiva da humanidade. “A razão pura é prática por si mesma e dá ao
homem uma lei universal, a que chamamos lei moral” (ibid). Daí a ideia de que é
moral uma máxima que pode ser universalizada sem contradição. Eu não posso
fazer da mentira ou da exploração uma lei universal. Mas o desinteresse pode se
universalizar. Respeitar a humanidade em cada pessoa como um fim e nunca
somente como um meio. Tal é o imperativo incondicional. Respeito significa
sentimento de consideração e de respeito por uma pessoa ou uma regra de vida.
Em todos os aspectos, ali existe a consciência viva do valor irredutível
daquilo que é resoeitado. Assim, respeitos mútuos podem acontecer entre
indivíduos. A esperança de ser tratado pelos outros como nós os tratamos não é
uma certeza. E é preciso que assim seja para que o dever não seja viciado de
cálculo. Não se é virtuoso para ser feliz, mas para ser digno de ser, e o resto
não depende de nós. Esperança reguladora.
Um exemplo simples. Em sociedade,
ninguém é livre para fazer voluntariamente barulho durante a noite. A lei que
reprime o ruído noturno leva a evitar o barulho por medo da polícia. Tal
motivação produz obediência calculada: nada tem de moral. É a um imperativo
“hipotético” que ela obedece: “se você quiser evitar problemas com a polícia,
abstenha-se de fazer barulho.” Por outro lado, a lei que determina o respeito
ao vizinho como um imperativo incondicional, desprovido de qualquer cálculo,
leva a evitar fazer barulho por pura moralidade, pelo respeito espontâneo à
humanidade na pessoa do vizinho. É neste sentido que Kant o define como um
imperativo categórico. A intenção do ato, nesse caso, nada tem a ver com o
medo. A autonomia do sujeito que age converte o “você deve” da autoridade
externa em um “eu devo” de boa vontade, interior à consciência.
A abobada estrelada e
a lei moral
“Duas coisas enchem o
coração de admiração e de uma veneração sempre nova e sempre crescente, à
medida que a reflexão entra em vigor e se aplica: o céu estrelado acima de mim
e a lei moral dentro de mim.” Kant se maravilha com “o imenso espaço onde os
mundos se adicionam aos mundos” e com a lei moral interior que “começa no meu
invisível, no íntimo da pessoa “. Por que Kant julga essa lei admirável? Porque
ela torna manifesta a nossa capacidade de agir desinteressadamente,
contrariamente a interesses onipresentes e impulsos egoístas. Nosso poder de
superar determinismos naturais aos quais estamos sujeitos em primeiro lugar nos
torna legisladores da humanidade pela definição de regras que solidarizam todos
os homens.
Conclusão provisória
Com Kant a moral chegou a
uma espécie de clímax. Mas ela pressupõe um sujeito humano transparente por si
mesmo, plenamente consciente de tudo o que acontece nele. O que acontece com as
filosofias da suspeita que colocam em dúvida esta suposição? A Moral sobrevive?
FONTE: BIBLIOT3CA
Publicado em 11 de outubro
de 2016:
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