Por Ir.'. João Anatalino
O equilíbrio cósmico
Houve
uma época na vida da humanidade em que todos os homens tinham consciência da
unidade do universo e sabiam que o céu e a terra eram complementos um do outro.
Ambos refletiam uma Consciência maior que os havia pensado.
Em
dado momento, porém, ocorreu uma ruptura entre essas estruturas, fazendo delas
compartimentos dois estanques. Essa é ideia que se transmite na tradição
hermética e está assente em todas as doutrinas esotéricas que acreditam na
existência de civilizações anteriores á nossa.
Essa
ruptura foi interpretada pela tradição religiosa como sendo uma queda do homem
do seu status anterior, de parente dos deuses, Daí surgiu a visão dialética do
cosmo como se ele fosse composto de estruturas diversas, incomunicáveis entre
si, opostas, antagônicas e, ás vezes, até inconciliáveis. A produção universal,
fosse matéria ou pensamento, passou a ser vista como reação entre energias
antagônicas: bem e mal, luz e trevas, verdade e mentira, ação e reação, macho e
a fêmea etc. O divino e o profano, da mesma forma que céu e terra, tornaram-se
unidades independentes, cuja unidade foi rompida e precisava ser recomposta
através de uma atitude religiosa por parte dos homens. A religião, como
tentativa de religar os deuses aos homens foi o resultado dessa impostura.
Nos
primórdios da nossa atual civilização os povos se recordavam dessa ruptura,
cuja consequência foi interpretada como uma “queda” que provocou a sua expulsão
de um paraíso. E a partir dessas lembranças procuraram reconstituir, pela
religião, esse estado anterior de unidade onde o múltiplo era um, o que havia
dentro era igual ao que havia fora, o que estava cima igual ao que estava em
baixo. A experiência mais conhecida e importante nesse sentido foi a que os
hebreus, antecedentes dos israelitas, legaram á humanidade. Nesse sentido, a
instituição da nação de Israel como maquete da humanidade autêntica e perfeita
que Deus desejaria instituir sobre a terra foi a mais clara e contundente
experiência nesse sentido. Com a escolha do povo de Israel para ser o “povo
eleito”, o que se buscava era a recomposição do equilíbrio cósmico, abalado
pela queda do homem. Essa é a ideia que está no centro do estranho conceito
cabalístico do Tikun[1
Maat, e o equilíbrio universal
Em
contraposição á essa ideia, há quem acredite que a civilização que chegou o
mais próximo possível dessa unidade primordial talvez tenha sido a antiga
civilização egípcia e as que dela se derivaram, ou seja, as civilizações
pré-colombianas. Os ecos de uma cultura ainda incompreensível, apesar de todos
os estudos realizados, ainda ressoam pelas ruínas dos monumentais corredores
dos imensos e magníficos templos construídos por aqueles povos. Parece que os
espíritos dos maçons que construíram as gigantescas tumbas e os colossais
edifícios que se encontram nos areais do Egito e nas montanhas andinas e
planícies mexicanas e da América Central, lá ainda se conservam para nos dizer
que o tempo não existe, que o universo é único, que somos nós que não
entendemos as leis naturais, e consequentemente utilizamos mal o fluxo
constante da energia que molda o universo, interrompendo a corrente de
Maat.
No
Antigo Egito, como sabemos, a idéia de um estado de perfeita ordem e harmonia
estava inserida no culto à Maat, a deusa da justiça e da retidão moral.
Acreditava-se que essa divindade era a mediadora entre as potências do céu e da
terra. Ela regulava as relações entre os deuses, estabelecendo a harmonia entre
eles, e também entre os homens, fazendo com que eles vivessem em paz e em
união. Por isso, todos os homens de responsabilidade na sociedade egípcia
deviam viver de acordo com a Maaty, ou seja, se comportar de acordo com
rigorosos princípios religiosos e morais, vivendo uma vida justa e perfeita, em
todos os sentidos. Falhar em viver segundo esses princípios implicava em ser
julgado com muita severidade no chamado Salão de Maat (também conhecido como
Tribunal de Osíris, onde as almas dos mortos eram julgadas), e ser condenado á
destruição pela serpente Apépi. Já aqueles que viveram suas vidas de acordo com
essas regras eram conduzidos pelo deus Osíris através da Tuat (a terra da
escuridão), até o outro lado, onde entravam no território de Rá, o sol
radiante, e se integravam à luz que emanava daquele deus. Essa era a
reintegração da centelha divina, que está em cada alma humana, ao centro
irradiante, que os egípcios identificam no deus Rá, o Sol.
Na iconografia egípcia, a deusa Maat aparece como sendo a esposa, ou a parte feminina do deus Thoth, que com ele veio ao mundo quando as águas do abismo primitivo se abriram pela primeira vez. Seu símbolo era uma pena, que representava a leveza que uma alma devia apresentar quando estivesse diante do tribunal dos deuses. Nos tempos mais antigos do Egito, o nome dessa deusa estava conectada também com os artesãos (que deveriam fazer obras com perfeição), o que justifica o apreço com que o termo Maat é usado na simbologia maçônica.
Os
egípcios usavam o termo de uma forma moral e espiritual, significando direito,
verdade, lealdade, honestidade, retidão, caráter, justiça, probidade, etc. De
acordo com os antigos egípcios, são essas ações Maaty que instruem os processos
cármicos a que estão submetidas todas as almas que nascem no mundo, e nos dão
como resultado uma sentença de mérito ou demérito, cuja aplicação reflete em
nossas existências orgânicas e espirituais, fazendo de nós criaturas mais ou
menos afortunadas, que evoluem ou regridem, numa escalada ascendente ou
descendente. É um conceito semelhante ao desenvolvido pelo mestre cabalista
Isaac Luria, em sua doutrina.[2]
Esse
processo tem como meta um aperfeiçoamento constante das nossas qualidades e
virtudes, até um ponto onde possamos transcender da nossa condição de meros
seres humanos para uma esfera mais sutil da realidade cósmica. Esse é o sentido
da nossa escalada da matéria para o espírito e a finalidade de toda a vida.
A função dos Antigos Mistérios
Era
crença dos antigos egípcios que a sua civilização lhes tinha sido transmitida
diretamente pelo Deus Thoth, que viera à terra justamente para essa missão
civilizadora. Ele lhes deu os rudimentos da civilização, ensinando-lhes a
agricultura, a metalurgia e a organização social. Ele ensinou todas essas
coisas a Osiris, o primeiro rei a governar em todas as terras do Egito, e este
a propagou entre todos os povos do reino, mantendo a harmonia e a paz, até o
dia em que foi assassinado e esquartejado por seu invejoso irmão Seth.
Essa
é, precisamente, a função dos chamados Antigos Mistérios egípcios, festivais
rituais nos quais se representava a reconstituição do corpo dilacerado do
rei-deus Osíris por seu invejoso irmão Seth, na lenda conhecida como Mistérios
de Ísis e Osíris. Nessa lenda, o corpo de Osiris, cortado em pedaços e
espalhados pelos quatro cantos da terra é reunido e recomposto pela sua
esposa-irmã Ísis, que lhe dá novamente a vida. Esse Mistério simboliza a ideia
egípcia da reconstituição da unidade cósmica, quebrada pela rebelião do mal
contra o bem. [3]
A repercussão na filosofia
É
possível que o mal tenha realmente entrado no universo quando os homens
começaram a “fazer” história, ou seja, a partir do momento em que passaram a
compor exercícios semióticos variados, como consequência da variedade de
linguagens que se instalou na terra com a multiplicação das famílias humanas.
Por essa razão, os símbolos deixaram de ser comuns e Deus “afastou-se dos
homens”, pois desse momento em diante, sua história não seria mais que um
reflexo das suas próprias consciências, não mais refletindo a consciência Dele.
É
provável, também, que até certo momento na vida dos grupos que povoaram a
terra, tivesse sido possível para eles captar o reflexo da Consciência Divina,
e com isso interferir nas próprias ações da natureza. Mas isso, como é possível
perceber, deixou simplesmente de acontecer a partir de certa época. É certo que
até os tempos de Josué, (pelo menos a Bíblia está a indicar isso), Deus parecia
estar bem presente na história humana. Grosso modo, parece que a intervenção
divina, imobilizando o sol no firmamento para que os israelitas pudessem
marchar em volta das muralhas de Jericó e derrubá-las com o som de suas
trombetas, foi uma das últimas ações diretas da Divindade na história dos
homens. Depois dela as intervenções diretas de Deus na terra escassearam, e a
partir de certa época, não se falou mais nisso. [4]
Tudo
acontece como se a divindade se desinteressasse do destino dos homens,
provocando uma ruptura entre os dois estratos: o divino e o profano. E por isso
o Zaratustra de Nietzsche pode dizer: Deus morreu. [5]
Aqui,
precisamente, é onde se insere a religião. Após a separação entre o céu e a
terra, entre o sagrado e o profano, alguns espíritos mais sensíveis começaram a
pensar num meio de religar essas duas estruturas, recuperando aquele estado de
harmonia, ordem e felicidade que acreditavam, um dia, existiu no universo.
Então inventaram a religião e construíram templos para neles invocar a Divindade, que segundo acreditavam, voltaria a visitar os homens a partir do momento que a reunificação pretendida ocorresse. Por isso é que a função de toda religião é religar o profano ao sagrado. É levar o homem de volta para o território da divindade, como espírito, de onde um dia ele saiu como centelha de luz que capturou massa física.
A rebelião gnóstica
Quando
os teólogos transformaram o Cristianismo numa ideologia de massa e a vincularam
á cultura do povo romano como religião oficial, a maravilhosa doutrina do
mestre de Nazaré deixou de ser uma verdadeira ponte entre o sagrado e profano,
para se transformar em mais um instrumento ideológico. E assim também aconteceu
com o Islamismo, o Judaísmo, o Bramanismo e todas as demais religiões que foram
apropriadas pelos governantes, e utilizadas como instrumento político.
Nesse
sentido, Jesus também deixou de ser o Messias, o redentor das almas perdidas,
para se tornar apenas mais um ideólogo. O Jesus do Cristianismo oficial
transformou-se em mais um filósofo, contestável e doutrinariamente
insatisfatório para um espírito que buscava uma realidade divina. Assim
pensavam os filósofos neoplatônicos e com base nesse pensamento floresceram as
teses gnósticas, como tentativas de recuperar aquele Cristianismo messiânico e
mágico que as primeiras comunidades cristãs professaram, e que fez a força do
novo credo.
É
nesse sentido que os gnósticos cristãos dos primeiro século procuraram
preservar a pureza do conhecimento iniciático contido na mensagem cristã. Eles
não acreditavam em nenhuma verdade revelada por um Deus particular e
preconceituoso, como lhes parecia ser o Deus do Velho Testamento. A verdade,
segundo a sensibilidade que os dominava, estava na própria criação que Deus
espalhara sobre o universo e não na mensagem de uma pessoa em particular. Da
mesma forma que os sacerdotes egípcios e os mestres das religiões orientais,
eles pensavam que o conhecimento do mundo divino só podia ser atingido através
de uma adequada iniciação, onde a prática ritualística pudesse ser combinada
com fórmulas apropriadas de meditação e invocação da divindade. Para esses
místicos pensadores dos primeiros séculos,
Jesus não tinha em mente criar um novo credo, mas sim reformar o
Judaísmo, que ele acreditava ter sido corrompido pelos fariseus, saduceus e
outros “doutores” da lei, que segundo ele, interpretavam as escrituras sagradas
em seu próprio benefício, “colocando sobre os ombros do povo, fardos que nem
com um dedo queriam erguer.” Nesse sentido, ele era o Messias, o Reformador, o
Restaurador, que os antigos oráculos profetizaram. Aliás, o termo “Messias”
corresponde a um personagem exclusivo da tradição de Israel e se referia a um
profeta, ou herói, na mesma linha de Elias, Eliseu, Moisés, Sansão, Davi, etc.
ainda que mais poderoso. A sua apropriação como salvador da humanidade, como
redentor universal, foi uma criação dos seus discípulos, especialmente do
Apóstolo Paulo. Os filósofos gnósticos fizeram a ponte entre as tradições
judaicas do Messias e o Cristo universal, arquétipo existente em todas as
tradições religiosas dos povos antigos, e os doutores da Igreja se apropriaram
da ideia, transformando-a numa religião universal. Daí o entendimento da Igreja
de Roma, de que todas as interpretações doutrinárias contrárias á sua
constituíam heresias.
Os gnósticos e a Maçonaria
Os
gnósticos acreditavam que a popularização do conhecimento obtido pela prática
iniciática acabava por abastardá-lo. Por isso transmitiam a sua doutrina á
pequenos grupos, e no mais das vezes, por via oral e sempre através de símbolos
e alegorias. Nisso imitavam as antigas sociedades iniciáticas do Oriente, e
essa tradição foi transmitida para os hermetistas, que depois deles fundaram
diversas Fraternidades para conservação e transmissão dos conhecimentos que
pensavam ter obtido em suas nessas práticas.
Os
gnósticos não devem ser confundidos com mágicos ou divulgadores de heresias
religiosas, embora em suas práticas, apelassem constantemente para o pensamento
mágico. Seus temas são naturalmente religiosos, e não o poderiam deixar de ser,
dada á própria cultura no qual se inseriram. Constituíam, na verdade, grupos de
livre pensadores que recusavam qualquer dogma e deduziam seus conhecimentos das
grandes leis da natureza. Cultuavam o saber pelo saber, sem temores religiosos.
Seu objetivo era criar uma ciência do divino, uma teosofia, cujo objetivo era a
descoberta dos caminhos para a salvação do homem através do conhecimento, em
oposição ao caminho da Igreja, que era o da fé, absoluta e incontestável, nas
interpretações dos doutores da Igreja.
A
base da filosofia gnóstica estava em uma visão unificada do universo, onde tudo
estava contido em tudo, o que estava em cima era igual ao que estava em baixo,
o que estava dentro refletia o que estava fora. A função do iniciado era a
descoberta dessas realidades e unificá-las em seu espírito, atingindo assim a
verdadeira iluminação que constituía, na verdade, a única salvação que o homem
poderia almejar. Semelhante á pratica que hoje se observa na Maçonaria, os
gnósticos dos primeiros séculos formavam comunidades calcadas na interação
mestre-aprendiz, acreditando que tal processo gerava a energia necessária para
alimentar a chama sagrada do conhecimento do divino (gnosis). Em função disso
desprezavam o clero secular considerando-os como ”ovelhas perdidas”. Para eles,
os membros do clero regular eram padres, enquanto eles se consideram monges.
Essa
fórmula viria a ser utilizada mais tarde pelos Cavaleiros Templários, o que, de
certa forma, contribuiu para o seu afastamento da Igreja. É possível que a
transformação da Ordem dos Cavaleiros do Templo do rei /Salomão em sociedade
iniciática tenha sido um dos principais motivos da sua condenação pela Igreja.
Mas essa é outra história...[6]
[1]
Tikun significa reordenação. A Cabala ensina que o pecado de Adão quebrou “a
unidade primordial” do universo, fazendo com que a luz divina, que deveria se
espalhar pelas “conchas” universais de uma forma ordenada, se dispersasse pelo
vazio cósmico. Assim, o objetivo de Deus, ao escolher um povo para “discípulo”
e orientador da humanidade era a recomposição dessa unidade quebrada pela queda
do homem.
[2]
Ver Gershom Schollen- A Cabala e seu Simbolismo- 2006. Nesses dias anteriores aos tempos
históricos, os deuses eram tidos como Mestres da construção universal e os
homens os seus aprendizes. O que os primeiros faziam no céu refletia sobre a
terra, e o que os homens faziam na terra repercutia no céu. Por isso a
responsabilidade recíproca na construção e no equilíbrio do edifício cósmico se
dividia por igual entre homens e deuses. Um dia esse equilíbrio foi rompido,
por isso a desordem, a desarmonia, a injustiça, o mal, enfim, entraram no
universo e nele se mantém. E nele se manterá até que nós restabeleçamos esse
fluxo, tornando-nos justos e perfeitos novamente. Essa é a ideia que está no cerne
da doutrina maçônica.
[3]
Quanto á história do assassinato de Osíris por Seth, e sua posterior
ressurreição, promovida por sua irmã e esposa Ísis, essa é uma lenda bastante
conhecida dos maçons. Para mais informações veja-se a nossa obra Conhecendo a Arte
Real, citada. Veja-se também Edward Wallis Budge, Os Deuses Egípcios, Vol
I. A propósito, essas tradições egípcias
também tem correspondência entre os povos andinos, para quem o Espírito Supremo
(Uira Cocha) também promovia a civilização na terra através do seu escolhido, o
Inca. Os monumentais templos erguidos pelos incas para homenagear à sua
divindade solar não têm outra finalidade a não ser mostrar que seus discípulos,
na terra aprenderam bem a lição dos seus mestres divinos.
[4]
A doutrina cristã sugere que a suposta ausência de Deus na história dos homens
ocorre em virtude de Ele ter mandado a terra seu próprio filho, o qual foi o
último enviado divino. Depois da vinda de Jesus, Deus não precisou falar mais
com os homens face a face, pois toda comunicação entre o céu e a terra seria
feita pela Igreja que ele fundou. Esses postulados encontrariam fundamento nas
palavras de Jesus “ Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João, 4;3) e “ Tudo que
ligares na terra, eu ligarei também no céu” ( Mateus 16,17, ).
[5]
Friedrich Nietzsche- Assim Falava Zaratustra, Ed Hemus, São.Paulo,1979,
sustenta que as religiões reveladas (Judaísmo,Cristianismo, Islamismo),
destruiram a verdadeira religião, ( as antigas religiões solares)
substtuindo-as.por uma farsa ideológica, representada por um Deus cruel e
injusto.
[6]
Veja-se a nossa obra, Conhecendo a Arte Real, citado. Veja-se também Sarane
Alendrian, op citado. . Sobre a saga dos Templários e a sua face oculta,
veja-se o interessante trabalho de Baigent, Leigh e Lincol, The Holly Blood and
The Holly Grail, Ed. MacGraw Hill, Londres, 1986.
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