Como
é sabido, a admissão na Maçonaria ocorre através de uma Cerimônia de Iniciação
do interessado. Através dessa Cerimônia, o interessado adquire formalmente a
condição de maçom. Mas adquire em que termos? É maçom enquanto continuar a
integrar uma Obediência maçônica, ou a aquisição dessa qualidade é vitalícia,
isto é, perdura mesmo que a pessoa em causa abandone a Maçonaria ou dela seja
expulsa ou excluída?
Os
defensores da primeira alternativa consideram que a admissão na Maçonaria
pressupõe a aceitação das regras vigentes na mesma, designadamente na
Obediência em que ocorre a integração, e que essas regras, consubstanciadas
normalmente em regulamento, estatuto ou equivalente conjunto de normas,
estipulam que aquele que abandone a Maçonaria ou dela seja expulso ou excluído
perde a qualidade de maçom. Quem estiver abrangido por qualquer destas
situações será um ex-maçom.
Os
defensores da segunda alternativa contrapõem que esta é uma visão puramente
administrativa da questão, írrita porque a Maçonaria não se pode nem deve
reduzir a uma estrutura administrativa, antes é uma organização iniciática. E o
princípio iniciático impõe que quem foi iniciado, iniciado está e nunca deixará
de estar, independentemente da sua situação burocrática ou administrativa, da
sua ligação ou falta dela a uma estrutura maçónica. Conforme pontua René
Guénon, numa citação proporcionada recentemente por um Irmão sabedor:
"...
as organizações iniciaticas diferem profundamente das associações profanas, às
quais elas não podem ser assemelhadas ou mesmo comparadas seja de que modo for;
quem se retira ou é excluído de uma associação profana não tem mais nenhum laço
com ela e volta a ser exatamente o que era antes de fazer parte dela; pelo
contrário, a ligação estabelecida com caráter iniciático não depende em nada de
contingências tais como uma demissão ou uma exclusão que são de ordem
simplesmente "administrativa", como já dissemos, e apenas afetam as
relações exteriores; e se estas últimas se situam todas na ordem profana, onde
uma associação não tem nada mais a dar aos seus membros, elas são pelo
contrário na ordem iniciática, um meio simplesmente acessório, e de todo
desnecessário, relativamente às realidades interiores, únicas que
verdadeiramente importam."
E,
mais adiante, em nota associada:
"...
exemplo mais simples e mais vulgar no que diz respeito às organizações iniciáticas:
é absolutamente inexato falar de um "ex-Maçom", como se faz
correntemente; um Maçom demissionário ou mesmo excluído não fazendo mais parte
de qualquer Loja nem de nenhuma Obediência não fica menos Maçom por isso;
queira-o ele ou não o queira, isso nada altera; e a prova é que, se ele vier
depois a ser "reintegrado" não é iniciado de novo..." (In
"Aperçus sur L'Initiation", Editions Traditionnelles, pag. 113 e 114.
Paris, 1977)
Ambas
as posições têm aspetos que considero corretos e pontos que não merecem a minha
adesão. É para mim claro que uma Iniciação não tem o mesmo restrito significado
de uma adesão a qualquer associação ou coletividade, automaticamente extinta por
vontade do próprio ou da entidade a que se aderiu. Mas também coloco reservas
ao entendimento de que uma Cerimônia de iniciação "cria" um maçom,
que permanecerá maçom até ao dia de sua morte, contra ventos e marés, mesmo que
não o queira e ainda que não se comporte como tal. A Iniciação não é uma
simples adesão ou inscrição numa agremiação, mas também não tem, a meu ver,
qualidades mágicas que transformem alguém para todo o sempre, mesmo que o não
queira ou, decididamente, recuse comportar-se como é suposto fazê-lo quem se
transforme.
O
entendimento de René Guénon, que muitos seguem, na minha modesta opinião
insere-se numa tradição e visão religiosa cristã que - quer queiramos, quer não
- influencia o pensamento europeu desde há séculos e séculos. Nos seus trechos
acima transcritos, onde se escreve "Iniciação" poderia , com as
devidas alterações, escrever-se, por exemplo, "batismo" e tirar-se a
mesma conclusão... Na tradição religiosa cristã, a integração na comunidade
cristã ocorre pelo batismo e perdura até à morte - independentemente de o
batizado ser, muitas vezes, um infante destituído ainda da capacidade de formar
e expressar qualquer vontade sobre o assunto. E, parafraseando Guenon, também
um cristão batizado que se converta a uma outra religião, se porventura se
reconverter ao cristianismo não é batizado de novo - sinal de que o batismo
cria um cristão para todo o sempre e independentemente de vontades e
vicissitudes...
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Em
matéria religiosa, ainda posso entender que ao batismo se associe essa natureza
transformadora indestrutível. Tenho, porém, muita dificuldade em aceitar, sem
reservas, idêntica natureza transformadora indestrutível à Cerimônia de
Iniciação.
Claro
que uma organização iniciática difere profundamente das associações profanas.
Claro que a Cerimônia de Iniciação é bem mais e bem mais profunda do que o
preenchimento de uma ficha de adesão e uma decisão de aceitação de um novo
"associado".
Mas
considero errado dizer-se que quem se submeteu a uma Cerimônia de Iniciação
maçónica fica automaticamente constituído maçom - e para toda a vida, suceda o
que suceder, faça o que fizer, decida o que decidir.
Chamo
à colação um exemplo histórico que penso permitirá ilustrar as minhas reservas:
"Num
documento da Maçonaria, assinado por Egas Moniz, comprova-se que Agostinho
Lourenço terá sido membro de uma loja maçónica, em 1914. As mesmas figuras que
comparecem com ele, como o médico Ramon Nonato La Féria, na ocasião de uma Cerimônia
maçónica, testemunhada pelo jornal O Século, em 1931, serão perseguidas pela
polícia que ele dirige, meia dezena de anos depois." (in http://visao.sapo.pt/actualidade/portugal/2016-07-17-O-anjo-negro-de-Salazar).
O
sinistro e temível Capitão Agostinho Lourenço, todo-poderoso criador e diretor
da PVDE, antecessora da PIDE, foi iniciado maçom! Anos depois disso, maré
política virada e influente prócere do regime de Salazar, ilegalizada que foi a
Maçonaria, não teve problemas em perseguir os seus antigos Irmãos. Devemos
continuar, em nome da via iniciática, a considerar este personagem como
continuando a ser maçom, e não um ex-maçom, quando se dedicou, ao serviço do
seu senhor político a perseguir os que outrora considerara seus Irmãos? Para
mim, não restam quaisquer dúvidas: aquele personagem não passou de,
inequivocamente, um infeliz erro de casting...
É,
para mim, claro que a Cerimônia de Iniciação não tem artes mágicas para
transformar um profano num maçom. Nem todos os que se submetem à Cerimônia de
Iniciação são verdadeiramente Iniciados. A Cerimônia de Iniciação (ver, neste
blogue, A
Iniciação (I) e A Iniciação
(II)) é, a meu ver, essencialmente um catalisador que propicia a mudança e
transformação daquele que a ela se submete, no sentido de passar de um profano
a um vero Iniciado. Mas essa transformação ou é feita no próprio pelo próprio,
ou não há Cerimônia que lhe valha...
Assim,
e resumindo, a minha posição sobre este assunto é: um maçom verdadeiramente
Iniciado é, sim, um maçom para toda a vida - e não haverá ventos nem marés nem
vicissitudes nem vontades que mudem isso, porque, se foi verdadeiramente
Iniciado, foi transformado e comportar-se-á em conformidade. Normalmente, não
sairá, nem será excluído ou expulso. Se sair de uma Obediência, ou dela for
excluído ou mesmo expulso, se foi verdadeiramente Iniciado e transformado, continuarei
a considerá-lo como tal - e, se calhar, o problema será da estrutura que o
afastou... Mas não basta ter passado por uma Cerimônia de Iniciação para ser
verdadeiramente Iniciado. E aqueles que, embora tendo-se submetido a uma Cerimônia
de Iniciação, não lograram - porque não quiseram, ou simplesmente porque não
foram capazes - transformar-se a si próprios não me merecem o reconhecimento
como Iniciados. Saindo, sendo excluídos ou expulsos, são simplesmente ex-maçons
e, afinal, impropriamente, assim designados, porque não passaram de erros
de casting...
No
fundo, no fundo, ambas as posições têm a sua razão. O que importa é distinguir
entre simplesmente passar por uma Cerimônia de Iniciação e ser verdadeiramente
Iniciado. Aqueles serão ex-maçons, porque no fundo nunca foram maçons. Estes
merecem sempre o nosso reconhecimento como tal, porque nunca desmerecerão da
transformação que tiveram.
Disse.
Não sei se bem, se mal. Mas disse e dito está!
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