*Por Rafael Teodoro
O conto de Lima Barreto “O
Homem que Sabia Javanês” deveria ser lido no século 21 apenas como objeto de
análise histórica da República brasileira em formação. Lamentavelmente, a
crítica professada pelo escritor brasileiro permanece mais atual do que nunca.
Escritor Lima Barreto |
Poucas vezes na história da
Literatura pôde-se creditar tão veementemente a uma obra (e a um autor, por
consequência) a popularização de uma língua no imaginário cultural de um povo.
No Brasil, a façanha pertence ao escritor Afonso Henriques de Lima Barreto
(1881-1922). E a obra em referência é o conto “O Homem que Sabia Javanês”.
Publicado pela primeira vez em livro em 1916,
o tom cáustico e satírico empregado pelo autor em “O Homem que Sabia Javanês”
fê-lo repercutir para além dos limites da “alta literatura” pré-moderna. Foi
graças ao texto de Lima Barreto que o público leitor brasileiro se deu conta da
existência do tronco das línguas malaio-polinésicas, especialmente da língua
falada pelos habitantes da Ilha de Java e, para usar uma expressão do próprio
escritor, “lá pelas bandas do Timor”, isto é, o javanês.
É ainda mais curioso que um
conto — isto é, um escrito de narrativa curta — tenha causado tanto impacto na
vida cultural brasileira. Mesmo quem não leu o texto, de alguma maneira, já
ouviu falar do tal “javanês”, o que se pode atribuir às justas homenagens que
o texto de Lima Barreto tem recebido em campos que vão dos estudos acadêmicos
da Sociologia aos enredos de entretenimento humorístico da teledramaturgia. Leia mais
Crítica ao inculto bacharelismo
O javanês, por si só, nada
significaria não tivesse servido de mote ao conto escrito por Lima Barreto em
tom crítico ao bacharelismo e à sociedade dos conchavos e apadrinhamentos na
República brasileira do início do século 20.
No conto, o leitor é levado a
conhecer Castelo, o protagonista que narra a aventura. Castelo é assumidamente
um malandro, como bem evidencia a personagem, no início da narração, durante
uma conversa casual com seu amigo Castro numa confeitaria, onde se põe a contar
“as partidas que havia pregado às
convicções e às respeitabilidades, para poder viver".
“Poder viver” não é força de expressão. Lima
Barreto descreve Castelo qual um sujeito pobríssimo, recém-chegado ao Rio de
Janeiro, foragido de casas de pensão.
“Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava literalmente na miséria.
Vivia fugido de casa de pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar
dinheiro, quando li no Jornal do Comércio o anuncio seguinte: "Precisa-se
de um professor de língua javanesa. Cartas, etc.”
Mas Castelo, não obstante sua
miséria, não era pessoa maldotada. Pelo contrário. Era esperto. Ante o anúncio
do jornal, logo reconheceu ali a oportunidade do estelionato: “Ora, disse cá
comigo, está ali uma colocação que não terá muitos concorrentes; se eu
capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me”.
A expressividade de quatro
palavras num idioma dificílimo como o javanês demonstra bem a disposição do
golpe. Quatro palavras e já seria professor. Afinal, como reza o velho adágio
popular: “Em terra de cego, quem tem um olho é rei”.
E lá se vai Castelo. Segue
para a Biblioteca Nacional, ainda um tanto desnorteado, mas já convicto da sua
ação ardilosa. Eis, então, que lhe acode a ideia perspicaz: consultar a
enciclopédia, letra J, mais precisamente o artigo sobre Java e a língua
javanesa.
“Fiquei sabendo, ao fim de
alguns minutos, que Java era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia
holandesa, e o javanês, língua aglutinante do grupo maleo-polinésico, possuía
uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do velho
alfabeto hindu. A Encyclopédie dava-me indicação de trabalhos sobre a tal
língua malaia e não tive dúvidas em consultar um deles. Copiei o alfabeto, a
sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas, perambulando e mastigando
letras.”
Essa passagem do conto denota
uma ostensiva crítica ao bacharelismo brasileiro. Os bacharéis, na Primeira
República, eram os representantes dos coronéis. Estes, os mandantes ignaros,
valiam-se dos primeiros, seus mandatários letrados, para bem representar seus
interesses junto aos órgãos de Estado.
Nem todos os bacharéis,
todavia, eram verdadeiramente homens cultos (dir-se-ia eruditos). Muitos, com
efeito, eram bufões da intelectualidade. Cultivavam um saber enciclopédico, não
sustentado em bases culturais sólidas, senão na leitura de uns poucos artigos
sobre tal ou qual assunto em voga. Era o suficiente, no entanto, para, numa
República inculta e patrimonialista, fazer-lhes ascender socialmente.
E é exatamente esse o tipo de
bacharel, estelionatário da intelectualidade, que se encontra representado em
Castelo. Este, um reles golpista miserável, vai galgar postos no Estado menos
por seu mérito do que por sua astúcia.
Crítica à farsa dos falsos doutores
E assim Lima Barreto prossegue
sua narrativa. Concita o leitor a acompanhar a jornada histriônica do professor
de Javanês que nada sabia de javanês a não ser uns poucos informes
enciclopédicos superficiais sobre a língua malaia.
Entusiasmado com a ideia de
concretizar o golpe brilhante, Castelo candidata-se ao professorado do idioma
oceânico. Mas não pense o leitor que se cuidasse de um sujeito relapso. Como
todo bom estelionatário, Castelo sabia que o sucesso da sua farsa estaria em
fazer-se convencer no ensino da língua da Ilha de Java. Por isso, Lima Barreto
apresenta-o empenhado nos seus estudos de javanês na biblioteca.
“Em seguida, voltei à
biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz grandes progressos
nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a
um professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e
história literária do idioma que ia ensinar.”
Nessa passagem do conto
nota-se mais uma crítica do autor ao saber enciclopédico dos bacharéis da
primeira República: o fato de não ter feito grandes progressos no aprendizado
da língua que pretendia ensinar era, de certa forma, indiferente. Castelo sabia
que o conhecimento de verbetes sobre o idioma, associado a umas lições
alfabéticas primevas, já lhe dariam todo o cabedal necessário para o ardil de
“professor” que tencionava executar.
“É preciso não te esqueceres
que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além
do alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder
"como está o senhor?" — e duas ou três regras de gramática, lastrado
todo esse saber com vinte palavras do léxico.”
Esse ponto merece destaque.
Pois remete aos “falsos doutores” da nossa sociedade. Nesse sentido, impossível
não lembrar as “profissões tradicionais” de médico e advogado. Ambos são
“doutores”, mas quase sempre falsos doutores. Doutorado é título oriundo de
mérito acadêmico que, no Brasil, ainda é restrito a uma casta percentualmente
insignificante da nossa sociedade iletrada. Mas é deveras comum no meio
jurídico, só para citar um exemplo, encontrar de juízes a promotores assinando
peças como um “Dr.” imerecido, porquanto oriundo de uma titulação formalmente
inexistente e que só lhes é devida enquanto alcunha respeitosa por força da
tradição. Mas na ciência, como na filosofia, não pode haver espaço para
benemerências: o conhecimento precisa ser provado, demonstrado, julgado pela
crítica. Um intelectual se faz respeitável pela sua obra, pelas ideias que
externa quanto escreve, e não pelo cargo ou profissão que exerce.
É claro que a tradição
deferente de alcunhar os profissionais da área jurídica e da saúde de
“doutores” não seria um problema tivessem esses profissionais a humildade de
reconhecer exatamente isto: não são merecedores desse título. E, por isso
mesmo, se alguém lhos imputa por convenção, é preciso receber a honraria com a
sensatez de quem ouve uma forma de tratamento prescindível e nada mais. Por
óbvio, nada mais distante da realidade. Experimente o leitor adentrar as
cancelas de um tribunal e chamar um juiz de “senhor”, preterindo o “doutor”, e
mui provavelmente será ralhado ou, se tiver o azar de deparar com um desses
loucos ditadores de toga, pode mesmo receber voz de prisão por desacato. E qual
a razão de tamanho vilipêndio? É que vivemos numa “República das bananas”, onde
é preciso emular títulos nobiliárquicos para sair da condição de “cidadão de
segunda classe”, adentrando o círculo elitizado da “nobreza social”. Nesse
contexto das estroinices do Estado brasileiro, “senhor”, embora seja forma de tratamento
igualmente respeitosa, não permite ascender à condição de superioridade social
que só o vocativo de “doutor” suscita. E eis a razão pela qual ser “doutor”
numa “Banana Republic” é algo tão importante.
Lima Barreto sabia muito bem
disso e quis fazer de Castelo — o malandro simpático que narra sua carreira no
serviço público no conto “O Homem que Sabia Javanês” — o emissário da sua
crítica bem-humorada às mazelas de uma sociedade de apadrinhados.
O poder de “quem indica” no Brasil
Assim é que, no conto, encontramos um Castelo
estudioso do malaio, já indo bater às portas do rico doutor Manuel Feliciano
Soares Albernaz, Barão de Jacuecanga, de quem recebera uma carta para ir falar.
“Eu sou, avancei, o professor de javanês, que o senhor disse precisar.”
De maneira a justificar ao
ancião, sua vítima em potencial, a origem de seu conhecimento em uma língua tão
insólita, o narrador, criativamente, arquiteta uma mentira. Diz-se filho de pai
javanês, que fora tripulante de navio mercante e que viera ter à Bahia, onde
prosperara como pescador nas bandas de Canavieiras.
O engodo caiu bem,
considerando a aparência de Castelo, que lhe podia dar muito bem a aparência de
um “mestiço de malaio”, bem como o fato de que a miscigenação no Brasil gerou
“uma comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro”.
E assim Castelo apresenta seus
serviços na docência do javanês. Contrata as condições de preço e de hora com o
velho barão, de quem fica sabendo que sua missão é fazê-lo ler o alfarrábio
herdado junto a sei pai, escrito em idioma oceânico. O livro era um autêntico
“tesouro de família”: fora dado ao conselheiro Albernaz, avô do aluno, por um
hindu ou siamês agradecido. Segundo disse o avô do barão, tinha o condão de
evitar desgraças e trazer felicidades para quem o tivesse guardado. “Se queres
que o fado que me deitou o sábio oriental se cumpra, faze com que teu filho o
entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz.”
Como o cartapácio estava
escrito em javanês, o barão, se quisesse lê-lo e cumprir a sorte herdada
geração após geração, precisaria aprender a língua malaia. E é aí que entra
Castelo com toda sua astúcia.
Tomando em mãos o inquarto
diante de sua vítima, logo notou que apresentava algumas páginas de prefácio
escritas em inglês. Leu-as e descobriu que o calhamaço “tratava das histórias
do príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito”.
Essa esperteza singela, em ler
no inglês o que não saberia decifrar no malaio, deu verossimilhança ao golpe:
logo o barão tinha o saber de Castelo em alta conta. Estava diante de um
raríssimo professor de javanês.
Mais uma vez aqui Lima Barreto
mostra como é fácil enganar os ignorantes: um simples detalhe que passara
despercebido e ele se convertera no “professor” do idioma. Castelo estava
habilitado a lecionar javanês, um idioma no qual toda sua formação resumia-se a
uns poucos verbetes enciclopédicos.
Porém, não pense o leitor que
Lima Barreto reduziu a pecha de ignaro ao ancião vitimado pela astúcia de
Castelo. O Barão de Jacuecanga era homem de parentes importantes. Seu genro
era desembargador, homem relacionado e poderoso. E, ao saber do estudo do
velho, ficou entusiasmadíssimo com a potestade advinda de um conhecimento
linguístico tão incomum. Era apenas o início da fama que catapultaria Castelo
do pensionato miserável aos altos escalões do serviço público brasileiro.
Ao fim de dois meses de
“ensino”, o barão, contentíssimo com o “professor”, já lhe dava toda uma vida
de regalos. E a mentira seguia incólume, embora Castelo confessasse temer que a
farsa nalgum momento viesse a ser descoberta.
O temor se acentuou,
sobremaneira, quando fora enviado à presença do Visconde de Caruru, com uma
carta de recomendação redigida pelo barão, incentivando-o a ingressar na
diplomacia. O visconde conduziu Castelo, então, para a Secretaria dos
Estrangeiros, onde, despistando os amanuenses, foi levado à presença do
ministro.
“A alta autoridade
levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e
perguntou: ‘Então, sabe javanês?’ Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde
o tinha aprendido, contei-lhe a história do tal pai javanês. ‘Bem, disse-me o
ministro, o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu físico não se presta. O
bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou fazer
uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu
ministério e quero que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o
Brasil no Congresso de Linguística. Estude, leia o Hovelacque, o Max Müller, e
outros.”
Nessa cena, Lima Barreto
sintetiza o funcionamento do serviço público na primeira República. Sem
absolutamente nenhum mérito, sem absolutamente nenhum conhecimento, Castelo, um
malandro miserável que vivia a perambular fugido de pensões, ascendia, num golpe
brilhante, à condição de representante brasileiro em congresso internacional.
“Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria
representar o Brasil em um congresso de sábios.”
A moribunda República brasileira
Lima Barreto escrevia no
primeiro quartel do século 20, na então capital da República, a cidade do Rio
de Janeiro. Estava, neste conto sobre o qual ora me debruço, a denunciar que o
tão propalado mérito republicano inexistia no Brasil, soçobrando ante o
apadrinhamento dos poderosos e influentes. É daí que surge a ideia da “carta”
com que o barão mandara o professor de javanês ao encontro do visconde. A carta
é a demonstração de força do apadrinhador que, com sua influência, “senta
praça” nos órgãos de Estado.
A situação é cômica e,
lamentavelmente, atual. O falso professor de javanês é a alegoria literária dos
apaniguados do serviço público brasileiro. O Estado, com seus cargos, é loteado
como um feudo, onde prevalece antes a vassalagem que o mérito esperado numa República.
Aqui é preciso esclarecer ao
leitor algumas noções sobre o conceito de “República”. Nas Faculdades de
Direito, há uma disciplina chamada Teoria do Estado (mas que poderia,
acertadamente, ser substituída por outra, denominada Ciência Política), onde,
em tese, o republicanismo é estudado. Na formação do bacharel em direito,
dever-se-ia ponderar, a pretexto do estudo dessa matéria, os elementos
basilares à formação de burocratas estatais, como o serão os futuros “doutores”
em “ciências jurídicas e sociais”. É nesse ponto do curso que os professores
(seriam falsos também?) deveriam ensinar aos seus alunos a origem histórica das
estruturas da organização política de um país. Tivesse o sistema educacional
brasileiro um pouco mais de qualidade e os acadêmicos de direito sairiam da
academia sabendo que, teoricamente, em uma República, tomada enquanto forma de
governo, o poder soberano pertence ao povo. A República surge como ideia
antitética à monarquia, cujo governo é, por excelência, conduzido de maneira individualista
e, o mais das vezes, ilimitada. O governo republicano, portanto, surgiu pari
passu com a aspiração popular de limitação do poder, mas também de
participação. Não há republicanismo onde o povo não pode ascender ao poder. Por
isso, numa República, os mandatos são eletivos e temporários. É preciso que o
governante submeta a si próprio periodicamente ao escrutínio popular por meio
das eleições. Com isso, enfatiza-se a ideia de soberania popular, de que o
poder é do povo.
Se o poder pertence ao povo, o
Estado também. E é aqui que começam as mazelas do republicanismo brasileiro.
O patrimonialismo nacional,
historicamente, sempre privilegiou a República dos coronéis em detrimento da
República dos cidadãos. Na primeira, mandavam os grandes proprietários de
terras, assessorados por um guilda de bacharéis, que saíam dos bancos das
faculdades para dirigir o Estado, instruídos na manutenção do status quo. Esses
bacharéis, embora pudessem, só estudavam se quisessem. Não precisavam. Numa
República dos coronéis, não prevalecia a competência do profissional, mas sim o
grau de penetração de suas relações interpessoais no escambo de lotações no
Estado. Numa palavra, valia o peso do ouro no anel do dedo de quem indicava.
Quanto mais poderosa a figura do padrinho, tanto mais espaço teria o
apadrinhado nos “negócios” estatais. Fosse ele um completo imbecil, não
importava: tivesse sido apadrinhado por alguém influente e poderoso e as portas
do Estado ser-lhe-iam generosamente abertas.
Era essa a realidade criticada,
no início do século 20, pelo escritor Lima Barreto. Estudante negro e pobre,
ele vivenciou na pele a dura realidade do intelectual nascido em uma família
pauperizada: em 1904, foi forçado a abandonar os estudos na Escola Politécnica,
no Rio de Janeiro, para sustentar a família, quando o pai foi acometido de
demência. Embora escritor talentosíssimo, cuja prova mor é a perenidade de sua
obra, mofou a vida inteira na condição de um medíocre funcionário público
subalterno do Ministério da Guerra, onde não teve seu gênio reconhecido, o que
se constata pelo fato de que nunca ganhou sequer uma promoção. Viveu com
salário modesto, premido pela obrigação de ser arrimo de família, além de
crises constantes de depressão severa, em parte agravadas pela dipsomania, fatores
que culminaram com sua morte prematura, em 1922, quando o escritor tinha apenas
41 anos.
A biografia de Lima Barreto
merece ser recordada. Por meio dela, percebemos que o escritor, crítico da
Primeira República, sofreu com as injustiças sociais que o estigmatizavam, ora
por ser pobre, ora por ser negro, descendente de escravos. Em uma sociedade
verdadeiramente republicana, barreiras sociais dessa ordem não se poderiam
admitir. É que a República assenta no princípio da isonomia dos cidadãos. Num
plano teorético ideal, todos são iguais perante a lei. Semelhante contexto, em
consequência, não admite discrime plutocrático, tampouco apadrinhamentos.
Lima Barreto criticava a
República Velha brasileira, cuja forma fora adotada em 1889, porque nela não
via senão a retórica dos seus postulados. A isonomia, o princípio lapidar, era
sempre solapada pela pessoalidade e pelo compadrio entre poderosos. Não
importava o quão competente ou incompetente fosse alguém. Seu sobrenome
sobrepujava tudo, quando não o dedo indicador de um barão.
O conto de Lima Barreto, no
século 21, deveria ser lido apenas como objeto de análise histórica da prisca
República brasileira em formação. Lamentavelmente, a crítica professada pelo
escritor brasileiro permanece mais atual do que nunca.
A formação de professores de javanês
Por mais que tenham havido
avanços ao longo das últimas décadas, a verdade é que o Brasil está longe do
que se pode chamar de “República”. Falta isonomia ao País. Tal é de fácil
constatação ante a prática, sobejamente difundida, de “loteamento de cargos”
nos serviços públicos. São os famosos DAS — direção e assessoramento
superiores. Em época de eleições, os DAS consubstanciam a moeda de troca da
influência política, guerreando os partidos pela ocupação de tal ou qual
secretaria, além da indicação de todo um corpo de apaniguados a ocupar cargos
subalternos de toda a ordem. E o motivo não é nem um pouco patriótico: quem
ocupa uma dessas famigeradas assessorias na esteira de acordo político sabe que
irá, de mais a mais, ganhar um ótimo salário do Estado, trabalhando muito
pouco. Às vezes, dada a incompetência do indicado, é melhor mesmo que não
trabalhe, sob pena de prestar um desserviço ao País.
Do ponto de vista jurídico, o
sistema do concurso público surge para fazer frente a esses vícios
antirrepublicanos, de maneira a privilegiar o mérito do candidato, submetido a
um certame em igualdade de condições, abstraindo-se toda sorte de ingerências
pessoais. O concurso público, portanto, presta-se a concretizar o princípio da
isonomia, garantindo que os cargos do Estado sejam ocupados pelo critério
meritório, e não pelos conchavos e picuinhas político-partidárias. Por isso, a
Constituição brasileira, a lei fundamental do País, é enfática em determinar
que só se pode ingressar no serviço público por meio de concurso. E ponto
final.
Logicamente, a afirmação acima
só vale em repúblicas sérias. Não parece ser esse o caso do Brasil. Aqui por
estas bandas, é comum observar toda sorte de “jeitinhos” para “elastecer” o
mandamento constitucional. Há desde chefes do Poder Executivo evitando ao
máximo organizar concursos públicos, sabedores de que os “indicados” são de
fácil pressão e manipulação na hora do cômputo dos “votos por interesse”, a
órgãos que se constituem em verdadeiros “cabides de emprego” de militantes,
caso das assembleias legislativas espalhadas pelo País.
Esse cenário já seria
suficientemente grave não fosse o Poder Judiciário conivente com esses
desmandos. Basta observar que demorou 20 anos para que o principal tribunal do
País, o Supremo Tribunal Federal, editasse uma súmula vinculante, no ano de
2008, proibindo o nepotismo no Poder Público. Repito: 20 anos foram necessários
para que os “excelentíssimos senhores doutores ministros” reconhecessem algo
que mesmo o mais neófito dos estudantes poderia intuir a partir da leitura da
Constituição de 1988, nos termos da qual o Brasil constitui-se em uma
“República Federativa”.
Citei a mais alta Corte do
País, por ser emblemático demais o exemplo. Porém, friso existirem exemplos
ainda piores dentro da República das bananas brasileira. Basta olhar para os
órgãos do Poder Judiciário, especialmente os Tribunais estaduais, e notar toda
sorte de violações à isonomia. Há casos flagrantes de não concursados ganhando
mais que o dobro dos concursados, para além de contarem com o beneplácito da
“confiança” dos “doutos” magistrados. A confiança a que aludem esses juízes não
se reporta ao trabalho, pois não há forma de aferição mais segura de capacidade
técnica que a impessoalidade das provas. A confiança é usada para pretextar o
apadrinhamento oriundo das relações pessoais mais comezinhas, travadas na ordem
das “trocas de favores político-partidários”, dos sobrenomes de famílias
tradicionais que “dominam a cidade”, dos filhos dos coronéis contemporâneos.
Isso para não falar de desembargadores, homens relacionados e poderosos, responsáveis
por lotear essas mesmas assessorias, de remoções do interior “a pedido”,
fraudando o polo de lotação em concurso, a nepotismos cruzados às escâncaras.
Doutorando-se em javanês
O leitor já pode notar, portanto, que o
apadrinhamento criticado por Lima Barreto estende-se aos dias atuais. “O Homem
que Sabia Javanês” é a narrativa heroica do sucesso imerecido, de como alguém
pode vir a se tornar um influente agente público pelo engodo, em terra de
sábios incultos, de bacharéis iletrados e à revelia dos preceitos mais básicos
que, ao menos em princípio, deveriam governar o Estado. Um Estado, repito, que
se propõe a ser republicano; e que, por conseguinte, deveria priorizar a
igualdade entre os cidadãos.
É nesse sentido que se conota
a pecha de “República das bananas” para o Brasil. Não me pejo em afirmá-la
diante da realidade circundante do serviço público. E me preocupa, sobretudo,
saber que não é nova. Já no primeiro quartel do século 20, Lima Barreto
denunciava-a nas suas obras.
Sobre o assunto, o crítico
Francisco de Assis Barbosa nota similitudes na leitura pré-moderna que se faz
das obras de Lima Barreto e Euclides da Cunha, observando que: “Ambos possuíam
a consciência de que alguma coisa tinha de ser feita pelos escritores a serviço
do povo brasileiro, para retirá-lo da situação de miséria e ignorância em que
vivia, abandonado pelos governos, consequência da própria organização social e
política do país, quer sob o império, quer sob a República. Lima Barreto
bateu-se por uma literatura militante, o que de resto já não era novidade na
época. Só o era talvez para o Brasil. Euclides da Cunha, embora parecendo
desconhecer a expressão, não faria outra coisa, ao longo de sua obra, e toda a
sua ação intelectual o conduziria ao mesmo objetivo, de vez que, para ele, um
homem de letras devia ser o contrário de um beletrista ou afeito exclusivamente
ao belo, isto é, apenas interessado pelo papel da literatura, sem qualquer base
política ou social”.
O conto sobre o falso
professor de javanês, de Lima Barreto, deve ser lido como um conto sobre a
forma como, no início do século 20, dava-se a constituição do capital
intelectual dos bacharéis da República Velha brasileira. Este era menos produto
do esforço pessoal, alicerçado em sólida formação cultural, que das “cartas de
recomendação” de figuras bem relacionadas e poderosas, de barões a
desembargadores. Numa sociedade desse jaez, numa “República das bananas”,
qualquer um com um mínimo de criatividade pode desempenhar falsamente o papel
do intelectual e ocupar uma cadeira nos órgãos do Estado. Pode mesmo vir a ser
representante do Brasil em congresso de sábios, a concluir-se que, numa
sociedade de titulações e ascensões sociais iméritas, qualquer bacharel pode
vir a ser um sábio, um “respeitável homem das letras”. E mesmo um
estelionatário pode ser reconhecido pelo portento do seu “conhecimento”, galgar
os postos mais elevados, usufruindo vida regalada à custa do Estado, mesmo sem
merecimento algum.
No Brasil antirrepublicano em
que vivemos ainda hoje, o apadrinhamento e a apropriação privada que se faz na
condução dos negócios do Estado é como o simonte de antanho que o Barão de
Jacuecanga tragava quando recebeu o professor de javanês em seu casarão. É um
velho vício, terrivelmente grave para a saúde de um ancião, mas do qual o
doente não consegue se afastar. Ele prefere morrer lentamente a largar o fumo.
O prazer imediato é tudo. Nem o lenço de alcobaça pode fazê-lo sossegar.
A crítica implícita no enredo
de “O homem que sabia janavês”, de Lima Barreto, vai de encontro a uma
sociedade de falsos republicanismos, de falsos cabedais, de diplomas
fabricados, de títulos imerecidos. O autor se insurge contra a subserviência do
Estado ao compadrio, ao apadrinhamento, ao “toma lá dá cá” no trato da “res publica”.
Mas creio que, de todas as lições primorosas que seu conto pode deixar ao
leitor, talvez a mais relevante seja precisamente esta: na República das
bananas, só quem fala javanês é doutor.
*Rafael Teodoro é advogado e crítico de música e
literatura.
Fonte: Jornal Nova Opção
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